1
Hoje, durante quase todo o dia, meti-me vidas escritas adentro de dois artistas separados pelo Tempo (mas não totalmente) e reunidos agora pela Totalidade (o terem morrido): George Harrison (1943-2001) e Teixeira de Pascoaes (1877-1952). Houve por ali (algures) mais ou menos nove anos em que o músico inglês e o poeta português partilharam o ar, a água, a terra e o fogo.
2
Ambos foram férteis criadores, tendo ambos aumentado a humanidade da Humanidade. Se hoje, e aqui, os refiro, não o faço para colher, à sombra deles, qualquer réstia da luz intensa que emanaram. Não. Faço-o em preito de admiração, que não tem de ser devota para ser devotada.
3
Entretanto, a noite chegou com suas armas todas. Frio e aguaceiros afiam a pedra e o ar: viver é desembaraçarmo-nos de facas. Está bem. O Inverno é a mais perfeita catedral para celebração do casamento da crono e da meteoro logias. Gosto disso – e tenho sorte. A sorte advém-me de gostar de todo o tempo.
4
Desde menino que nenhuma temporada nem temporal algum me causam repulsão. É uma excelente coisa – uso plena consciência de tal. Tenho vivido a plena comunhão dessas três artes tão siamesas: a poesia, o tempo que faz e o outro tempo – o que tudo desfaz e refaz sem cessar. A poesia, a meteorologia e o relógio.
5
António, irmão de Joaquim, suicidou-se em Coimbra, com um tiro de pistola, a 28 de Junho de 1903. Noventa e seis anos depois, um perturbado tentou matar à facada George. A nota necrológica e a nota criminal são reais, mas não é senão profunda vitalidade o que ressuma das carreiras do antigo Beatle e do paladino do Saudosismo. Ou assim: vidas que foram vivas enquanto vidas.
6
Há uma aparente renúncia à mundialidade no português, de facto. Mas as palavras que escreveu, pela densa, constante e invencível hombridade que ressalvam, contrariam tal equívoco. Já George, obstinado criador de canções rebeldes à ditadura da chancela Lennon/McCartney, não abdicou nunca de orar ao oriente de si mesmo, para bem de nossos particulares ocidentes.
7
Vejo um dia de sol, mas no televisor. Vejo água e palmeiras: jogos entre a cor azul e a cor verde, a que o branco superior do céu algodoado confere um arbítrio e um regulamento. Rodo a cabeça para a esquerda e colido com a noite: nunca sou imune ao mortífero encanto do circo dela.
8
Teixeira de Pascoaes madrugava nela, repescando dela os espectros que depois colava pelas costas ao pergaminho. As noites de George terão sido de outro aparato, mas não decerto alheias à natureza introspectiva de todo o gajo que traz dentro alguma coisa deveras novas para dizer ao outro, a todos os outros.
9
Oh eu sei! Eu sei quão artificiais são estas simetrias. Mas “artifício” não é palavra que me repugne. É, também, fazer arte, até pela sua imemorial etimologia. E se o não é, deveria sê-lo. De que outra coisa (para que outra coisa), aliás, me sobraria viver? Ou que me resultaria do viver sem estes arte-ofícios? Bem pouca coisa, menos ainda que a regular quotidiana comezinha coisa da vida. Adiante.
10
Há a história da mulher de George Harrison passando a mulher de Eric Clapton, não obstando porém à posterior e perene amizade dos dois músicos. Há as ginofiguras de Teixeira de Pascoaes, ao mesmo tempo (o Tempo, sempre) etéreas e com mamilos. E há as histórias que me forço a ser capaz de. À sombra que me é natural e à luz para que caminho. Como todos, George e Joaquim incluídos, caminhamos todos.
Caramulo, noite de 16 de Fevereiro de 2007
Hoje, durante quase todo o dia, meti-me vidas escritas adentro de dois artistas separados pelo Tempo (mas não totalmente) e reunidos agora pela Totalidade (o terem morrido): George Harrison (1943-2001) e Teixeira de Pascoaes (1877-1952). Houve por ali (algures) mais ou menos nove anos em que o músico inglês e o poeta português partilharam o ar, a água, a terra e o fogo.
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Ambos foram férteis criadores, tendo ambos aumentado a humanidade da Humanidade. Se hoje, e aqui, os refiro, não o faço para colher, à sombra deles, qualquer réstia da luz intensa que emanaram. Não. Faço-o em preito de admiração, que não tem de ser devota para ser devotada.
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Entretanto, a noite chegou com suas armas todas. Frio e aguaceiros afiam a pedra e o ar: viver é desembaraçarmo-nos de facas. Está bem. O Inverno é a mais perfeita catedral para celebração do casamento da crono e da meteoro logias. Gosto disso – e tenho sorte. A sorte advém-me de gostar de todo o tempo.
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Desde menino que nenhuma temporada nem temporal algum me causam repulsão. É uma excelente coisa – uso plena consciência de tal. Tenho vivido a plena comunhão dessas três artes tão siamesas: a poesia, o tempo que faz e o outro tempo – o que tudo desfaz e refaz sem cessar. A poesia, a meteorologia e o relógio.
5
António, irmão de Joaquim, suicidou-se em Coimbra, com um tiro de pistola, a 28 de Junho de 1903. Noventa e seis anos depois, um perturbado tentou matar à facada George. A nota necrológica e a nota criminal são reais, mas não é senão profunda vitalidade o que ressuma das carreiras do antigo Beatle e do paladino do Saudosismo. Ou assim: vidas que foram vivas enquanto vidas.
6
Há uma aparente renúncia à mundialidade no português, de facto. Mas as palavras que escreveu, pela densa, constante e invencível hombridade que ressalvam, contrariam tal equívoco. Já George, obstinado criador de canções rebeldes à ditadura da chancela Lennon/McCartney, não abdicou nunca de orar ao oriente de si mesmo, para bem de nossos particulares ocidentes.
7
Vejo um dia de sol, mas no televisor. Vejo água e palmeiras: jogos entre a cor azul e a cor verde, a que o branco superior do céu algodoado confere um arbítrio e um regulamento. Rodo a cabeça para a esquerda e colido com a noite: nunca sou imune ao mortífero encanto do circo dela.
8
Teixeira de Pascoaes madrugava nela, repescando dela os espectros que depois colava pelas costas ao pergaminho. As noites de George terão sido de outro aparato, mas não decerto alheias à natureza introspectiva de todo o gajo que traz dentro alguma coisa deveras novas para dizer ao outro, a todos os outros.
9
Oh eu sei! Eu sei quão artificiais são estas simetrias. Mas “artifício” não é palavra que me repugne. É, também, fazer arte, até pela sua imemorial etimologia. E se o não é, deveria sê-lo. De que outra coisa (para que outra coisa), aliás, me sobraria viver? Ou que me resultaria do viver sem estes arte-ofícios? Bem pouca coisa, menos ainda que a regular quotidiana comezinha coisa da vida. Adiante.
10
Há a história da mulher de George Harrison passando a mulher de Eric Clapton, não obstando porém à posterior e perene amizade dos dois músicos. Há as ginofiguras de Teixeira de Pascoaes, ao mesmo tempo (o Tempo, sempre) etéreas e com mamilos. E há as histórias que me forço a ser capaz de. À sombra que me é natural e à luz para que caminho. Como todos, George e Joaquim incluídos, caminhamos todos.
Caramulo, noite de 16 de Fevereiro de 2007
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