19/05/08

Shine a Light, Os Rolling Stones Como Nunca se (Ou)Viram, por Dandelion

Shine a Light é um filme sobre os Rolling Stones. Mas é sobretudo um filme de Martin Scorsese. É uma peça para guardar do ponto de vista do estudioso do cinema: Scorsese ensina-nos como é possível controlar absolutamente um ambiente produzido ao pormenor do ponto vista visual e sonoro. Aconselho o seu visionamento a todos os alunos de cinema e em particular ao meu amigo cineasta, M.C.S. (hello mene, um grande saravá para ti no caso, improvável, de algum dia leres isto). A maior dificuldade de Scorsese parece que foram os próprios Stones que não foram capazes de lhe fornecer, sequer, o alinhamento das músicas que iriam tocar a não ser uns segundos antes da entrada em palco da banda com JJ Flash.

Os Rolling Stones já foram filmados por grandes realizadores – Godard deixou um documentário histórico das gravações de Beggars Banquet e apanhou os primeiros acordes do, à data, inédito Simpathy for the Devil.
Al Ashby filmou a mítica digressão de 1981 num célebre concerto em Filadélfia. Depois há uma série de grandes concertos que, embora sem assinatura de grandes nomes do cinema, ficaram na história do Rock n`Roll filmado. Os Stones em Hyde Park, o concerto que homenageia o recém falecido Brian Jones em 69 e que conta com a participação do novo guitarrista da banda Mick Taylor é, obviamente, um marco. Um pouco mais tardio, mas igualmente histórico, é o filme sobre o festival de Altamont, um documento sobre o caos que degenerou em tragédia ( a morte de um indivíduo pelos Hells angels enquanto a banda interpretava Simpathy for the Devil).
A produção cinéfila inflacionou nos últimos anos – só os 3 compact-dvd sobre a Licks Tour (essa mesma que passou em Coimbra) consta de cerca de 15 horas de música! E há mais uma série de coisas menores das digressões anteriores… E já que estou a fazer o registo das filmagens acerca da banda não posso deixar de assinalar o mítico Cock Sucker Blues, filmado pelo grande fotógrafo Robert Franck e proibido pela banda ou o fabuloso Rolling Stones at the Abbatoirs, em Paris, para mim, o melhor filme-concerto da banda. Agora é a vez de Martin Scorsese com Shine a Light.

Scorsese sempre foi um indefectível stoniano e os seus filmes estão cheios de referências musicais do grupo (assim de memória lembro-me de ouvir Tell Me num dos primeiros, Jumpin Jack Flash e Gimme Shelter no último, entre outras). A ideia de fazer um filme sobre a banda foi, obviamente, bem acolhida, dado o estatuto galáctico do realizador. Mick Jagger pretendia que o filme documentasse o mega-show que a banda deu em Copacabana para cerca de um milhão de pessoas. Mas Scorsese preferiu um ambiente mais intimista, que podia controlar melhor do ponto de vista cinematográfico. A escolha recaiu sobre o Beacon Theatre de Nova Yoork, uma pequena sala com lotação de 2000 lugares. O filme é uma selecção feita a partir dos dois concertos dados no Beacon.

Em relação a toda a anterior filmografia da banda, Shine a Light é uma inovação absoluta. Basta compararmos o início do concerto filmado por Scorsese com outros inícios de outros filmes. Al Ashby, por exemplo, filma o concerto de 1981 em Filadélfia de modo a captar a grandiosidade de um estádio com lotação para 150 000 pessoas completamente à pinha. Os Stones parecem formigas no palco e o realizador intensifica este efeito de esmagamento recorrendo à filmagem aérea do estádio e da cidade. Podem apreciar aqui: http://www.youtube.com/watch?v=D_Bxgiof7So.

Agora comparem com a entrada da banda, JJ Flash, em Shine a Light – http://www.youtube.com/watch?v=276YvPgwGQA

Notaram a diferença? Pois é: Shine a Light é um filme de grandes planos, Scorsese não procura disfarçar mas enfatizar as rugas dos membros da banda. O olhar de Scorsese é diferente, ele vê o mito tal como é, sem disfarces nem maquilhagens, e fica ao critério de cada um saber se isso é apologético ou, simplesmente, cruel. O grande plano é de facto uma das marcas do filme, um olhar microscópico até ao exagero (nem vou entrar nos pormenores orgânicos como a transpiração e afins captados pelas câmaras de scorsese).

Ou seja, enquanto Ashby e, já agora, a generalidade da filmografia feita até hoje, reforçava o mito e a sua grandiosidade, acentuando a distância entre as individualidades da banda e a multidão, Scorsese faz, precisamente, o contrário: colocando-nos no centro do palco, praticamente na pele dos músicos, acaba por «des-mitificar». Shine a Light é um filme de dedos, de pele, de olhares de cumplicidade entre os músicos, de expressões - de gozo, de diversão, de cansaço, assim como indecisões e até de ternura. É um filme profundamente visceral.

Daqui resulta o oposto do filme de Ashby: a humanização da banda, brilhantemente conseguida pelo olhar terno de Scorsese, um apaixonado pela banda. Salvaguardadas as distâncias entre Jesus Cristo e os Rolling Stones (não consta que Cristo tenha feito uma só música ao nível de Start Me Up), deste ponto de vista, Shine a Light faz lembrar um outro filme de Scorsese: A Última Paixão de Cristo. Também aqui, baseado nos Evangelhos Apócrifos, o realizador leva a cabo o retrato de um Jesus de rosto humano. No fundo é ainda a mesma tentativa de dessacralização, agora da banda, que vemos em Shine a Light.

Na primeira parte do filme, Scorsese está tão preocupado com os detalhes do que se passa em palco que quase não vemos o público. As câmaras quase que estão de costas para a plateia, estamos mesmo em cima do palco. Na segunda parte, marcada pelo reportório clássico da banda (Start me up, simpathy for the devil, brown sugar, satisfaction), tudo muda – até luz - e Scorsese filma a euforia da assistência, usando as câmaras por detrás dos músicos e de frente para o público (gostava de saber a quantidade de câmaras usadas, tal é a sua profusão, entre os músicos, atrás dos músicos, à frente, no meio do público, no alto, em baixo, há câmaras por todo o lado apanhando as reacções das pessoas e a magnífica arquitectura do Beacon Theatre . É uma lição no domínio do ambiente e não admira porque há aqui dois mestres à solta: Mick Jagger, o animal de palco, e Scorsese o herói do olhar.

No entanto há uma nota de artificialidade que não passa despercebida. Reparem no público das primeiras filas… Pois… Tudo belos e jovens exemplares, principalmente, gajas e todas de tops Armani ou coisa que as valha… Ninguém me convence que é por acaso: obviamente aqui houve selecção, eventualmente, agência de modelos contratada para mobilar as primeiras filas que vão aparecer no filme. Creio que aqui Scoresese não resistiu e criou uma nota dissonante na tendência geral de des-mitificação própria do filme. Perde-se alguma coerência, até porque é visível que muitas daquelas garinas não são suficientemente fanáticas nem versadas no reportório da banda. Não é que não sejam mais agradáveis à vista, mas por imperativo de coerência, pessoalmente, teria gostado mais de ver ali fãs genuínos.

Deixo ainda uma nota para um equívoco que passa na publicidade ao filme: Shine a Light não é um documentário. É o filme de um concerto ou melhor de dois concertos realizados pelo grupo no Beacon Theatre. É verdade que há uns filmes antigos pelo meio com entrevistas aos membros da banda e apanhados de Have you Seeen Your Mother Baby…, de 1968, para ilustrar a histeria das fãs. O denominador comum dessas entrevistas parece-me ser, mais uma vez, a tentativa de humanização da banda. Jagger aparece muito novinho a dizer que está muito admirado com os dois anos da banda e que acha que se vão aguentar mais um; noutro clip diz que se vê perfeitamente a tocar aos 60 anos. Quem vai para ver um documentário, desiluda-se: o filme não é sobre a história dos Rolling Stones. Não há referências a Brian Jones, nem a Mick Taylor, nem a Bill Wyman, nem a Ian Stewart. Não é esse o objectivo do filme. Trata-se simplesmente de um concerto, entrecortado com filmes antigos da banda que, ainda assim, podiam ser mais.

Uma nota final ainda para um dos melhores aspectos do filme: a qualidade absolutamente extra do som. De facto, é como estar num concerto mas em certos aspectos ainda é melhor porque a qualidade do som é fantástica. Scorsese chega a pormenores em que amplia guitarra de Richards ou de Woods para corroborar uma expressão, por exemplo. Aquilo resulta em cheio. Um dos momentos mais altos nesse aspecto é o excelente diálogo entre as guitarras de Richards e de Buddy Guy em Champagne and Reafer. Sinceramente já vi um concerto da banda – o último de Alvalade – em que o som estava bem pior do que no filme. E paguei bem mais... Portanto, para quem nunca viu os Stones ao vivo, eu aconselho vivamente este filme e num écran de cinema, nunca no miserável vídeo lá de casa. E para quem já os viu, aconselho na mesma: é a oportunidade de (ou)ver os Stones como nunca se (ou)viram.

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