29/01/07

Não Se Pode Enforcar Um Homem-Tronco, por PercaDoNilo



“(…) - Estou a pensar no aleijado. Que presunção! A quem lhe der ouvidos até há-de parecer que as mulheres andam mesmo atrás dele.
- Não te esqueças, senhor oficial, de que aquele mendigo, por causa das mutilações, representa uma mina de ouro. As mulheres que o cortejam são interesseiras.
- Seja como for! Uma criatura tão hedionda!
- Não há nada que seja hediondo. Este homem-tronco faz amor tão bem como qualquer outro. E até melhor, se bem entendo e a julgar pelo que me foi dado ouvir. Digo-te eu que os gritinhos de volúpia da mulher não eram fingimento. E confesso ser tal coisa bastante animadora.
- A que chamas tu animadora?
- Olha - disse Gohar -, reconforta saber que até um aleijado como aquele pode dar prazer.
- Semelhante monstro?!
- Este monstro tem sobre nós uma vantagem, senhor oficial. Sabe o que é a paz. Não tem nada a perder. Pensa-me só nisto: não há nada que alguém lhe possa tirar.
- Pois tu julgas então que é preciso chegar a esse ponto para uma pessoa ter paz?
- Não sei - respondeu Gohar. - Talvez seja necessário um homem tornar-se homem-tronco para atingir a paz, para a conhecer. Imagina só a impotência do Governo perante um homem-tronco. Que poderá o Governo contra ele?
- Pode enforcá-lo - disse Nur El Dine.
- Enforcar um homem-tronco! Não, Excelência, de maneira nenhuma. Não há governo nenhum com humor para isso. Seria belo demais. (…)”

Este diálogo foi extraído do livro “Mendigos e Altivos” de Albert Cossery. Cossery é um escritor algo esquisito, inclassificável mesmo. Nasceu e cresceu no Cairo e mantém ainda a nacionalidade egípcia, mas há mais de 60 anos que se auto-exilou em Paris, onde teve como compinchas de boémias Albert Camus e Jean Genet. Escreve em francês, mas todos os seus livros remetem para o Egipto em geral e o Cairo em particular. Filho de pai francês e mãe árabe, foi educado no Cairo em escolas francesas. Apesar da educação e do exílio francófono, a cabeça de Cossery e a sua escrita nunca abandonaram os bairros e as gentes miseráveis do delta do Nilo.

Cossery diminui as mulheres, e faz a apologia do sono, da sesta e do silêncio. Nos seus livros não há grande história ou intriga intensa. Existem alguns incidentes e depois Cossery faz desfilar diante de nós toda uma panóplia de personagens fabulosas. Como a acção é escassa, as páginas vão-se virando com falas, pensamentos e formas de estar. Com Cossery está-se. E no entanto, tudo acontece. As personagens são do mais abjecto, marginal, desprovido e preguiçoso que se possa imaginar, mas Cossery fugindo aos estereótipos da lamechice realista, constrói a partir delas uma realidade poética e apaixonada. A ironia, o sarcasmo e o gozo a tudo o que seja poder, instituição, ordem ou progresso é uma constante. O moderno, o herói, o conquistador ou o sucesso, tudo merece de Cossery o mais profundo desprezo. A adjectivação é excessiva e assumida.

No mais é ouvi-lo. Já li tudo o que dele se publicou em português, há alguns de que não gostei, mas há três deles que são puro prazer de leitura: “Mendigos e Altivos”, “Uma Conjura de Saltimbancos” e “Os Homens Esquecidos de Deus”. Aqui ficam alguns excertos:

“(…) O guarda Gohloche tinha nascido carrasco. Os seus olhos reflectiam uma estupidez que matava. (…) O guarda Gohloche personificava a maldade mais detestável: a maldade posta ao serviço dos grandes da terra. Uma maldade paga. Já não lhe pertencia. Tinha-a vendido a gente mais competente que a usava para subjugar e mortificar todo um povo miserável. Já não era senhor da sua maldade. Devia conduzi-la e dirigi-la segundo certas regras cuja atrocidade não variava.
O guarda Goloche morava na viela Negra, mas exercia as suas funções de tirano no centro da cidade europeia. E era para ele uma espécie de morte. Definhava. Num meio assim, frequentado geralmente por europeus, a sua vigilância encontrava sérios obstáculos. Não podia expandir-se à vontade. E então Goloche transferia o seu ódio para tudo o que o elemento indígena fornecia em matéria de escravos: vendedores ambulantes, mendigos, pequenos apanhadores de beatas, leprosos, cegos e toda a tribo de vagabundos que não conseguiam morrer porque se levava muito tempo a matá-los. Essa escória, vinda de toda a parte para dar à cidade europeia um ar de Oriente exótico, era numerosa. Um abençoado alimento para os olhos dos turistas. Mas o guarda Goloche não era turista e não entendia nada de exotismos. (…)”

“(…) - Que bem escreves - disse a moça. - Bem se vê que andaste na escola.
Ele respondeu sem a olhar:
- Pois andei. E tu, não andaste na escola?
- Ora, por que havia eu de ir à escola? - respondeu Arnabá em tom de desprezo. - Eu cá sou uma puta. Quem tem um bom traseiro não precisa de saber escrever.
- Tens razão - disse Gohar. - Nunca ouvi nada mais acertado. (…)”

“(…) É muito simples, vou dar porrada na minha mulher -, declarou Hanafi com voz sombria e fatal. - Não há outra coisa a fazer.
- Porquê? É ela que tem o dinheiro?
- Não, quem o tem é a minha sogra. E é uma pessoa de bom coração. Não gosta de ver bater na filha. Percebes? (…)”

“(…) Abou Chawali aborda o assunto que o traz preocupado.
- Procurei-te, efendi Gad, para te falar de um perigo que ameaça o mundo dos pobres.
- Que perigo, mestre?
- O perigo da fantasia.
- Fez-se um silêncio, durante o qual Gad tenta escapar ao professor. No fundo, o meio onde é obrigado a viver horroriza-o. Sente um nojo instintivo por todo esse mundo real e miserável. Gosta mais de se divertir em situações extraordinárias. O domínio da fantasia é tão variado. Pensa na galinha de penas douradas e olhos de mulher voluptuosa, que de súbito desapareceu. Há na vida coisas fantásticas e Gad gosta dessas coisas. No entanto, volta-se para Abou Chawali e pergunta com um ar interessado:
- Que estavas a dizer, mestre?
- Dizia, efendi Gad, que para nós a fantasia é um perigo. Precisamos de outra coisa.
- E de que precisamos nós, mestre?
- Precisamos de realismo -, afirmou com força Abou Chawali.
A palavra realismo paralisa todas as faculdades de Gad. Não sabe que responder. Pergunta a si próprio se não faria bem em falar ao professor da galinha dos olhos magnéticos, que tentou seduzi-lo como uma prostituta. (…)”

Com Cossery, o Cairo esquecido de deus, entra-nos pelos olhos dentro. A sordidez e o absurdo caminham de mão dada com uma vida pujante e demente. É uma terra estranha, com uma vida estranha aquilo que se nos entranha a cada página. Páginas onde é rei um homem-tronco, garanhão de fêmeas sedentas de tudo. Um homem impossível de enforcar, como diz Cossery. Ninguém tem um tal sentido de humor. Seria belo demais.

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