11/06/08

Portugal, por Um Português


Há uns tempos vim para aqui falar de religião e obtive algumas reacções adversas da parte de alguns confrades, no sentido de que não devia vir para aqui falar dessas coisas. Não porque sejam crentes, os estimados confrades, o que seria mais compreensível para mim, mas simplesmente porque é uma perda de tempo. Não se chega a lado nenhum e é como discutir o sexo dos anjos, é inútil, dizem. O argumento é, de resto, habitual. E continua a ser habitualmente incompreensível para mim, que até gosto de discutir o sexo dos anjos, o feitio dos deuses, o mistério da criação e outras trivialidades inconsequentes. Mas não é por isso que acho essa posição incompreensível.

Quem reflecte e discute com alguma seriedade (isto é, com frequência e liberdade) os deuses, as religiões e as fés, fá-lo porque é um exercício intelectual tão essencial e importante como a filosofia ou a ética; fá-lo porque quer perceber melhor a essência e a natureza das coisas, mas fá-lo, sobretudo, porque as religiões, os deuses e as fés não são assuntos irrelevantes para a nossa existência física, concreta, social, económica e cultural. Afectam profundamente a forma como vivemos, enquanto indivíduos e enquanto comunidade. E nessa medida é tão importante como discutir política, finanças, ciência ou história.

E se compreendo perfeitamente que para um crente essas sejam matérias indiscutíveis - são muito poucos os crentes que façam reflexões críticas acerca da sua religião (entendida aqui como a organização/instituição a que aderem), e muito menos os que o fazem em relação à sua fé obviamente, porque um dogma não se discute - e nessa medida efectivamente de debate inútil, uma evidente “perda de tempo”, já não consigo perceber, nem admitir, que num espaço de liberdade como tem sido o Tapor, essas não sejam matérias de controvérsia. São-no, obviamente, quanto mais não seja porque, havendo ou não liberdade de pensamento, tudo é controverso. E são mais discutíveis, digo eu, do que o torneio europeu de futebol em curso ou a carreira do John Holmes. Para não dizer importantes, pronto já disse. Mas o facto é que, apesar de muito pouco, a religião já foi tema de algum intenso debate aqui no porco, a última de que me lembro foi há cerca de dois anos, em torno do secularismo e da (discutível) contribuição judaico-cristã para o mesmo. Mas por norma é tema alheio ao Tapor.

A prova da sua importância, no entanto, saiu na edição de hoje, Dia de Portugal, do Público.

Portugal é o país mais pobre da Europa Ocidental e só não o é da União Europeia porque os novos países-membros do Leste ajudaram na estatística. Vinte anos depois da nossa entrada na UE, com biliões em subsídios injectados no país para efeitos de “coesão”, a realidade é que não saímos da cepa torta e hoje somos talvez a sociedade europeia menos preparada para os desafios da chamada “globalização” e para a sociedade do conhecimento, a “terceira vaga” que os Toffler anteciparam há umas décadas. Sem falar na impreparação para crises e desafios mais concretos e presentes, nomeadamente os económicos, os relacionados com recursos ou com competitividade global.

Muito do problema nacional, por outro lado, prende-se com questões de mentalidade e derivados, como comportamentos, atitudes e padrões culturais. As mentalidades são moldadas sobretudo por tradições e convicções, factores que por seu turno condicionam (e perpetuam) os tais comportamentos, atitudes e padrões. Acresce que o domínio das convicções com impacto social se divide fundamentalmente nas de cariz religioso e nas de natureza ideológica (i.e., políticas). E isto para concluir que sim, são questões importantes e discutíveis e que, em meu entender, os portugueses são como são e Portugal é como é, em primeira instância, devido à religião e à política, dois mundos simbióticos quando não estão devidamente separados um do outro.

De resto, todos os países são fruto e reflexo das mais diversas crenças e tradições. E nós, portugueses, somos fruto e reflexo do catolicismo romano e das políticas que este credo foi avalizando ao longo dos séculos.

O Público chamava, enfim, a atenção para um estudo internacional promovido pelo projecto Social Survey Program. O estudo versa o tema “identidade nacional” e há-de estar por aí melhor explicado pela net (aqui, por exemplo). O que interessa, para o caso, é que as gordas da primeira página do jornal gritavam: “Ser português é ser católico, pensa a maioria”. Lá dentro mais gordas assustadoras: “Em Portugal, nação e Igreja são equivalentes”. Os dados do estudo, acrescentava o jornal, «revelam que mais de dois terços dos portugueses consideram a religião um factor de identidade nacional, muito mais que em outras nações da União Europeia. O estudo mostra ainda que o orgulho nacional está muito ligado à História». Isto reflecte um pouco a ideia genérica que fazemos de nós próprios, enquanto povo, e é como tal talvez pouco fiável em relação às dinâmicas sociais efectivas e presentes, mas é extremamente revelador no que respeita a convicções (no caso, a ideia que fazemos de nós próprios) e tradições. Logo, a mentalidades e atitudes. «Ser português equivale a ser religioso, e mais concretamente católico: é assim que pensam 68,5 por cento dos cidadãos» portugueses, segundo o estudo, que abrangeu 34 países (nenhum dos quais muçulmano e vinte dos quais europeus). Portugal está em sétimo da geral, na importância dada «à religião como elemento definidor da identidade nacional. Na União Europeia, só é ultrapassado pela Polónia e Bulgária».

O estudo é muito interessante e aborda outras questões, como o facto da nossa fonte primordial de orgulho (para uma esmagadora maioria de quase 99 por cento) seja o passado (quantas vezes mitificado...), ou seja, não o que somos, mas o que supostamente fomos. «Nesta postura, Portugal está muito mais próximo de alguns países do Leste, como a Bulgária, a Eslováquia ou a Rússia, do que dos seus pares ocidentais. “Um enorme fosso”, constata Sobral (José Sobral, historiador e um dos coordenadores do estudo em Portugal). Para os portugueses, a grandeza continua então a ser pertença do passado», acrescenta o artigo.

O factor religioso, no entanto, foi o que mais surpreendeu (apesar de toda a evidência!...) os estudiosos, que concluíram que «o sentimento religioso faz parte de um bolo que nos afasta da maioria dos nossos parceiros europeus». Mas vale a pena perceber melhor o “fenómeno”, que estas coisas das identidades nacionais são efectivamente muito interessantes. Para José Sobral, esta mentalidade tem raízes tanto longínquas como recentes. «Recuando à época medieval, os portugueses viam-se e eram apontados, nas narrativas nacionalistas, “como tendo uma relação especial com Deus”: eram uma espécie de povo escolhido”, a quem fora dada a missão de espalhar a fé pelo mundo. “Este sentimento foi reforçado de modo a legitimar a expansão imperial”, frisa Sobral. Apesar do abanão da I República, o catolicismo voltou a florescer no Estado Novo, tendo-se reconstituído como um pilar do “nacionalismo oficial”, promovido por Salazar».

O paralelo com a vizinha Espanha (cujo desenvolvimento disparou desde que saiu da ditadura franquista e abriu a sua economia e, sobretudo, desde que aderiu à União), país que também encarnou nos mesmos católicos moldes essa missão evangelizadora e imperial, é fantástico e é sublinhado pelo historiador. «É revelador que, apesar dos reis católicos e da conquista, da guerra civil, do longo reinado de Franco e da relação especial que este manteve com a Igreja Católica, “apenas” 44,2 por cento dos espanhóis acreditam hoje que ser religioso é um atributo significativo da sua identidade. Em França e nos países nórdicos, esta percentagem está abaixo dos 20 por cento.».

É esta, enfim, a relevância de discutir religião. Por que se somos assim, pobres, tristes e iletrados, em muito grande medida o devemos à religião. Aliás, em grande medida o devemos a não se discutirem temas como a religião. Somos como somos porque estivemos durante séculos mergulhados em tradições e convicções religiosas de determinada natureza. Tradições essas extremamente convenientes à classe dirigente, a governantes como Salazar, homem mais pragmático do que propriamente crente, para quem a preponderância da religião, sobretudo de uma que prega a submissão e o conformismo (porque a recompensa está no céu e etc.), era uma questão essencialmente instrumental, no sentido da pacificação social - cumpre lembrar que os “católicos progressistas” eram não só uma pequeníssima minoria entre a população nacional, circunscreviam-se praticamente a Lisboa, como eram segregados e criticados pela instituição e pela generalidade dos paroquianos menos dados às rebeldias. Para os poderosos, com efeito, esta associação com a igreja sempre foi ouro sobre azul.

Os efeitos nefastos da preponderância política e social das religiões é mais gritante nos países islâmicos, obviamente, mas o caso português é exemplar no lado ocidental, pela negativa, dos respectivos malefícios sobre uma sociedade. Refiro-me criticamente e especificamente à Igreja Católica Apostólica Romana, tradição e convicção que tem imperado em Portugal desde há quase mil anos e que moldou decisivamente (desgraçadamente, digo eu, mesmo que nem tudo seja mau...) a atitude e o modo de ser português.

Nem todas as religiões, por outro lado, terão os mesmos efeitos que a religiões católica ou muçulmana, estruturalmente conservadoras e tradicionalistas, mais avessas à inovação e à diferença. O caso dos Estados Unidos, por exemplo é muitas vezes invocado pelos crentes como uma prova de que uma sociedade pode ser religiosa e ao mesmo tempo progressista e próspera. É certo. Os norte-americanos são esmagadoramente religiosos. O que falta referir é que professam, desde que são nação, uma religião bem diferente da nossa. Quer os norte-americanos quer os europeus do Norte (essa outra parte do mundo atrasada e analfabeta) são sobretudo povos de tradição protestante. E isso faz, como fez, uma enorme diferença na forma como os países evoluíram, mesmo que o Deus seja o mesmo...

Neste caso já não me estou a referir ao sexo dos anjos, estou a falar de ética, moral e comportamentos, usos e costumes, questões concretas que dizem respeito ao discutível universo religioso. O que a realidade nos mostra (por muito que alguns militantes religiosos apregoem a falácia da “falência dos valores” nas sociedades seculares) é que as sociedades mais religiosas, ou pelo menos, as mais adeptas de determinadas religiões, são invariavelmente as mais atrasadas – o drama do continente africano é um assunto diferente e muito particular.

O que este estudo confirma, quanto a mim, é a Igreja católica enquanto causa profunda e persistente do nosso atavismo, da nossa forma de ser conservadora, ignorante e fatalista, dos políticos medíocres a que nos conformamos e do estado em que estamos, mesmo atendendo aos sinais positivos para o futuro, que também os há nas novas gerações, cada vez com mais “mundo” e consciência dos novos desafios (globais) que têm de enfrentar. São também, sintomaticamente, gerações cada vez mais secularizadas, urbanas e menos dadas às crenças, às tradições e aos rituais religiosos institucionalizados, sendo significativo o crescimento, exponenciado pela net, do ateismo, do agnosticismo ou de correntes espirituais alternativas, nomeadamente as conotadas com a “new age”. Ou da simples indiferença. Mas a realidade que este estudo aflora é que a maioria ainda sente que é religiosa e que é isso que ainda a identifica enquanto nação, enquanto principal elemento agregador. Uma nação católica apostólica romana, fiel ao Papa, como no tempo dos afonsinhos.

Só um exemplo: A tendência católica, tal como o maometismo, privilegia conceitos morais como a caridade e a aceitação. E isso gera uma mentalidade assistencialista, de ajuda piedosa ao doente e ao desafortunado. Não é de resto por acaso que uma das chaves do sucesso de facções muçulmanas como os xiitas de Moqtada Al Sadr no Iraque, do Hezbollah no Líbano ou do Hamas em Gaza, são as redes de assistência social às populações, que monopolizam a ajuda em certas zonas. É óbvio que se trata de uma questão de conquistar simpatias, mas trata-se também da mesma lógica assistencialista profunda que anima a tradição católica, que cada vez menos monopoliza, de resto, a assistência aos pobres e aos desvalidos.

O protestantismo, pelo contrário, assumiu uma tradição ética e moral muito diferente, estimulando sobretudo a iniciativa individual, o empreendedorismo e a insubmissão. Desde logo em relação à doutrina papal; à autoridade centralista do Vaticano, que se exercia com um peso brutal nos governos terrenos das nações e à teologia romana oficial. O protestantismo chegou e traduziu a Bíblia para vernáculo, para a língua do povo, deixou de ser exclusivo em latim para meia-dúzia e passou a ser vox-populi, permitiu que cada um fizesse a sua pequena exegese, fragmentou-se em milhares de sub-cultos evangélicos (além das principais sub-divisões originais, a luterana, a calvinista e a anglicana) e, sobretudo, permitiu um espírito (uma mentalidade) mais livre, crítico e dinâmico, mais facilitador de educação, ciência e cultura, mais adepto de ensinar a pescar e menos de oferecer o peixe. E também menos intolerante.

Ora, tudo isto fez toda a diferença, na forma como as diferentes sociedades evoluíram, já que quer o catolicismo romano quer o islamismo, se deixados à “rédea solta”, como aconteceu em Portugal até 1974, se assumiram como forças paralisantes e castradoras. O catolicismo, quanto a mim, tem a vantagem de, apesar de tudo, se adaptar melhor às mudanças e às novidades do mundo e de ser mais aberto à dialéctica. Mas isso não o torna imune à crítica e acho que já vai sendo tempo destes assuntos e destas responsabilidades históricas serem discutidas, deixarem de ser tabu ou, pior, mito.

Pronto, para já era só isto.

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabens! É tão simples dizer o que se pensa de tudo; Então porque se torna tão dificil em Portugal e no mundo falar de religião?
Haverá outra coisa tão sujeita á duvida racional do que a religião?
O dia que se for livre a discutir os tabus religiosos, começa a liberdade do homem!
Até lá é verdadeiramente formidavel discutir as ideias do supremo.

Daniel Abrunheiro disse...

estou impressionado, fosga-se. granda texto, carago.

Cão

Anónimo disse...

do post aproveita-se a ideia suprema e essencial: "Pronto, para já era só isto".
Quando me portar mal, penitencio-me e leio o resto

Nossa Senhora