24/01/04

SIM, EU GRAMO BOÉ A AMÁLIA E ORGULHO-ME DISSOpor Fat Boy Slim

Amália-postal turístico

Certa vez, em França, dizia-me uma senhora da geração da cantora, que gostava muito de Portugal. Com um ar de turista nostálgica do tempo em que correu o mundo, falou-me das mulheres dos pescadores na Nazaré. Descalças e vestidas de negro ajudavam os homens e esperavam, como Penélopes, enquanto eles iam para o mar... Comparou as saias compridas dessas mulheres com as das mulheres árabes e recordou-se dos carros de bois e do porte humilde e digno dos trabalhadores nas lides agrícolas (esses mesmos que depois haveriam de emigrar para os “bidonvilles” de Paris e que os franceses acham sempre que são excelentes pessoas e “óptimos trabalhadores”).
Perguntei-me que Portugal era esse que eu só conhecia dos filmes antigos.... Tão antigos que aquele país que me descreviam já nem sequer era o mesmo que eu conheci quando era criança. E muito menos o Portugal actual, orgulhosamente europeu com os seu Shopping Centers imponentes e as netas das mulheres dos pescadores vestidas na Mango e na Zara e a cheirarem a Boticário. Para concluir, dizia-me a senhora francesa, havia um rosto e uma voz, que para ela resumia todo aquele universo: o rosto e a voz de Amália.

Amália, tradição e modernidade
Aquele era, afinal, o retrato do velho Portugal salazarista reproduzido muitos anos depois, a centenas de quilómetros de distância por uma mulher saudosa: a imagem de Amália-postal-turístico, ícone de um Portugal rural que já não existe. Imagem agradável a um ditador rural como era o Beirão, António de Oliveira Salazar, nado e criado no culto da terra e das virtudes tradicionais: Deus, Pátria e Família. Facilmente encontraríamos nas músicas cantadas por Amália a exaltação destes valores: lembremo-nos de Foi Deus, de Que Deus me Perdoe, da exaltação de Ai Mouraria ou de Fado Alfacinha e de tantos outros motivos nacionais ou desse autêntico documento sociológico que é Uma Casa Portuguesa.

Comparemos este universo com os novos ícones do Portugal contemporâneo: à devoção religiosa de Avé Maria Fadista, por exemplo, opõem os Xutos e Pontapés o seu herético Avé Maria, panfleto minimalista que ridiculariza Fátima ou o psicanalítico e Morrisiano Mãe. Pense-se no sexismo de um Pedro Abrunhosa (Talvez F.., Não Dá), o qual contrasta claramente com um certo puritanismo próprio da época de Amália. Pense-se ainda no universo humilde e pobrezinho descrito em Uma casa Portuguesa e no seu negativo contemporâneo dos Ena Pá 2000, o já célebre Báum (“Eu quero ir ao Frágil Sexta Feira/Eu quero ser amigo da porteira/ quero andar nos copos com os artistas/ e aparecer nas capas das revistas/ não quero mais viver em Chelas e ir à Costa no Verão/ Quero um andar no Bairro Alto e uma quinta em Azeitão/ o que me vale é um padrinho que tenho na Fundação”).

Fatalidade e Saudosismo

Fado e destino são tópicos que remetem para uma certa ideologia de cunho oriental (e muito justamente, se compara, não só a ideologia, mas sobretudo a estética do fado e do canto de Amália, aos cânticos árabes e mediterrânicos). O nosso destino já está escrito e há que aceitá-lo com resignação. A suprema sabedoria, como preconizam algumas filosofias orientais, consiste em sabermos adaptarmo-nos a esse fatum, traçado desde logo.

Embora esta ideologia da resignação implícita no fado, conviesse perfeitamente ao regime salazarista, é notória a sua contradição com as ideologias do sucesso, actualmente reinantes em Portugal. O cavaquismo e o guterrismo não são mais que duas versões desta mesma ideologia. De facto, nada há de mais antitético relativamente ao espirito fadista/fatalista cantado por Amália, do que a apologia do homem novo português, capaz de grandes empreendimentos como a recente Expo 98 ou o Euro 2004, de rasgar estradas ou de erguer pontes por todo o país. Enquanto Cavaco – mais claramente – e Guterres – de um modo mais velado e implícito – exaltam este novo homo faber português, Amália exaltava os sentimentos que agora são considerados depressivos: a saudade, o conformismo, a resignação e a tristeza....
Clássicos
O facto de Amália ser “uma cantora antiga” – como dizia um dos poucos representantes das novas gerações no seu funeral – não significa que a sua obra e o seu rasto tenham ficado presos ao passado. Há uma “eternidade” em Amália que nos toca e que ultrapassa a marca do tempo. Ela é um clássico que, como tal, se ergue na ruína do tempo. Como muito bem lembrou Caetano Veloso, ela é um símbolo de um certo sentir português, como o foram Edith Piaf para a França, Ella Fitzgerald ou Billie Holliday para os EUA, Maria Callas para a Grécia ou Elis Regina para o Brasil.
Mas como todas estas grandes artistas, ela é muito mais que isso. Elis é tanto de um brasileiro como minha; Callas é tanto de um grego como de um francês, como Amália é tanto minha como de um inglês. E nesse sentido Amália ainda está viva em cada um de nós, num português como num alemão, num brasileiro, como num chinês ou num marroquino. Todos nós, e não só os portugueses, temos, pois, Amália na voz, como cantava Variações...

Talvez porque os sentimentos que expressou se foram tornando nos últimos tempos politicamente incorrectos – lembremo-nos dos problemas de Amália no 25 de Abril e da contradição flagrante dos seus fados com a ideologia do sucesso actual -, a cantora entrou em rota de colisão com uma certa modernidade. No ruído das banalidades, a alma da “cantora antiga” é genuína e pura. Por isso Amália é mais que actual: é clássica, como o são Homero ou Mozart. Porque a actualidade não depende de se ter escrito ou cantado ontem, mas da novidade, da pureza e da verdade que se possui independentemente do tempo em que se cantou ou escreveu.

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