21/06/07

Grandes Vilões - I, por Mangas

Camaleões e Os Que Mordem Pela Calada

Uncle Charlie, “O Viúva Negra”, de A Mentira (Hitchcock, 1943). A par de Norman Bates de Pshyco, este é para mim um dos mais perturbadores facínoras criados por Hitchcock. Joseph Cotten compõe uma exemplar figura paternal, o irmão querido, o cunhado respeitado, o tio amado quase de forma proibitiva pela sobrinha adolescente (o Mestre, como sempre, aposta num hábil e discreto jogo de duplos sentidos amor/paixão, admiração/devoção). Contudo, este cavalheiro elegante e perfumado que nunca se deixou fotografar, sedutor, suave, saudável e sem mácula, move-se na sombra, não é o santo que se pinta e tem no currículo meia dúzia de cadáveres - mulheres que seduziu pelo dinheiro e estrangulou pelo desprezo por serem “animais gordos e ofegantes”. Quando é descoberto, tentará também suprimir a adorada sobrinha como um obstáculo que se lhe interpôs em cogitações. A Mentira é dos mais negros filmes de Hitchcock e Uncle Charlie um produto sombrio e letal do que mais retorcido pode ganhar raízes na mente humana.

Tom Ripley, de O Talentoso Mr. Ripley (Anthony Minghella, 1999) e O Jogo de Ripley (Liliana Cavani, 2002). O personagem que Patrícia Highsmith criou quase poderia ser, pelo estilo, a alma gémea de Hannibal, não fosse nunca se ter deixado apanhar e ter apetites, embora requintados também, mais comedidos, ainda assim... Ripley mata para se apropriar e ascender; tem um talento inato para suprimir vidas e se apropriar de identidades. Foi assim que começou quando jovem em Itália e continuou na idade adulta em França – do casulo eclodiu a larva que se transformou na mariposa sociopata. No processo, refinou o cinismo e o desprezo por qualquer seu semelhante, treinou a manipulação e a mentira sórdida, desenvolveu o charme mortífero e aprendeu com destreza a manobrar uma faca - em fases diferentes de evolução, quer Matt Damon, quer John Malkovich fazem óptimos papéis. Ripley é perigoso e tem classe. Tanto mais perigoso por nada o aparentar e ser um solitário. Move-se com a destreza de um verme, ataca fulminante pela calada. Ripley bebe Chateau Lafite e sonatas de piano na salão dos Rembrants, é um improvisador nato suprimido de consciência e sempre acreditou que “mais vale ser um alguém falso do que um ninguém verdadeiro”.

Roger "Verbal" Kint, aka Keyser Soze, aka “The Devil”, de Os Suspeitos do Costume (Bryan Singer, 1995). Um pequeno orçamento, uma grande história que valeu o Óscar de melhor argumento, um feliz cast de actores onde até as jovens trutas à época - Stephen Baldwin, Benicio del Toro e Chazz Palminteri -, conseguem brilhar ao lado das feras consagradas - Gabriel Byrne e Kevin Spacey que também levou a estatueta para casa. Resultado: Os Suspeitos do Costume, (título de homenagem a Casablanca), depressa atingiu o estatuto de cult-movie e se transformou numa referência absoluta do género crime-drama. A interpretação de Spacey é soberba. O ladrãozeco que interpreta é o mais inofensivo, frágil e inconsequente de todos eles. Aparentemente. Porque essa é a sua máscara. Durante todo o filme! Só no final se revelará como Keyser Soze, o autor do massacre e do incêndio no porto, da eliminação sistemática e impiedosa de todos os outros “parceiros suspeitos”. Mas quem é Keyser Soze? O próprio “Verbal” Klint assim o explica ao detective Kujan: nasceu na Turquia, começou como um pequeno traficante de droga até ao dia em que um gang rival húngaro lhe invadiu o território e violou a mulher à frente dos filhos. Soze, em resposta, matou toda a sua família por piedade e todos os autores da façanha com excepção de um que poupou para ir contar ao resto da quadrilha. Em seguida, atacou forte e feio no que sobrava dos húngaros matando-lhes os amigos, as famílias, os filhos, pais e amantes, incendiou-lhes as casas e os bens e desapareceu para sempre. Nascia o mito. Nunca vemos os olhos de Keyser Soze, apenas o rosto cândido de “Verbal” Klint; nunca vemos a expressão calculista de Soze quando executa os disparos a sangue-frio na nuca de Marquez, apenas a evidência do manquejar insuspeitável de “Verbal” Klint; nunca suspeitamos do planeamento frio de todas as mortes, apenas que “Verbal” Klint era demasiado estúpido para ser incluído, nunca constituiu ameaça e, como tal, foi poupado. No final o que vemos é “Verbal” Klint a sair da esquadra e a parar no passeio, a esticar o joelho “estropiado”, a andar desengonçado e a entrar num Jaguar conduzido por Kobayachi. Enganou-os a todos! Enganou-nos a todos o tempo inteiro! “O maior truque que o Diabo congeminou, foi convencer o mundo que ele não existia”, dissera-o ele antes.

Os Maus Como as Cobras

Tony Montana, “Mr. Fuck”, de Scarface (Brian De Palma, 1983). De exilado político a Padrinho da Costa Este. Ou, de criminoso de pacotilha que Castro expurgou para o porto de Mariel como uma ferida purulenta, a Inimigo Público Nº 1! Montana fez de tudo: espetou a naifa em comunistas, vendeu hamburgers na rua, limpou a sebo a traficantes chicanos, negociou com o cartel colombiano, roubou a namorada ao patrão (Pfeiffer, Michelle ma belle!), mergulhou Miami num tornado de cocaína, cresceu e construiu em torno de si um império de crime e tráfico, alimentou o ego com uma paranóia assassina e as narinas com auto-estradas de coca e, por suspeição, nem o melhor amigo e marido da irmã lhe escapou à metralha. Scarface é um remake menor da obra-prima homónima de Hawks de 1932 – para muitos o primeiro gangster-movie da história e inspirado na vida de Al Capone. Goste-se ou deteste-se da versão de Brian de Palma, cabe-lhe entre outros méritos o de ser um dos filmes com mais “fuck!” de todos os tempos – 218! Para a história fica: “I'm Tony Montana! You fuck with me, you fuckin' with the best!”

Frank Booth, “O Animal”, de Blue Velvet (David Lynch, 1996). Antes de tudo o resto, Blue Velvet é filme muito, muito bem feito! Fico-me apenas por um singelo pormenor, porque não é sobre a obra em si este texto: David Lynch tem arte e engenho para mudar quatro vezes seguidas de trilha sonora nos primeiros quatro minutos e meio de filme! E resulta sempre bem. Em cada dessas inflexões consegue uma harmonia perfeita entre os sons e as imagens que funcionam como unidades que se complementam, como sintonias de ambientes que o espectador contempla, cenários e melodias que descrevem a superfície visível e antecipam o mergulho nas trevas. Começa com os inquietantes violinos a lembrar os genéricos dos films-noirs dos anos quarenta, muda para a voz macia como algodão de Bobby Vinton no clássico que dá título ao filme e que serve para ilustrar as cenas do quotidiano pacífico numa pequena cidade do noroeste americano – o slow-motion do carro de bombeiros, as rosas vermelhas contra o céu azul, os miúdos na passadeira a caminho da escola, um velho a regar a relva, e, com o ataque cardíaco deste reformado, a câmara recua à dimensão de uma orelha decapitada, baixos e contrabaixos impõem-se de forma angustiante aos amplificados ruídos dos escaravelhos que a devoram, e tudo termina com uma grande cartaz da cidade madeireira e o jingle da rádio local, a voz de Lumberton. Notável! Quanto a Frank Booth, bem, esse é um cabrão tortuoso, arrevesado e maligno do piorio que o cinema nos deu! O papel assenta como uma bota a Dennis Hopper, na altura ele próprio em derrapagem acentuada com o uísque e as drogas. Mas Frank, quando mete uns bourbons para dentro e inspira o óxido nítrico da máscara portátil, toca as fronteiras da insanidade, alucina como um cão raivoso, descarrega uma fantasia sexual mista de bondage&incesto sobre a pobre Isabella Rossellini a quem chama carinhosamente “mummy” com a cabeça encostada ao colo antes de lhe pontapear os queixos…! O filho e o marido “à Van Goh”, tem-nos como reféns. E se tal não bastasse para completar o perfil desta besta tresloucada, como imagens de marca ficam-lhe as lágrimas convulsivas quando na penumbra do bar ouve a sublime Isabella cantar o Blue Velvet com aquela voz enfeitiçada e hipnótica; e o anuncio sonoro antes de mais uma incursão na noite underground que alimenta luz e a alma do filme: "I FUCK ANYTHING THAT MOVES!!" Está tudo dito. O cinema sem Frank Booth era como uma tourada sem ferros.

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