02/03/09

LIDO CO’ LÁPIS – 1: “Incoerências”, por Umberto Araújo

Esta nova série de textos sublinhados a lápis, começo-a com uma nota pessoal de somenos importância. Há quase 25 anos, adquiri (não anotei onde, coisa rara) um exemplar da primeira edição de “Incoerências”, um livrinho esquecível e justamente esquecido da autoria de um também esquecido e esquecível Umberto Araújo.

Foi no dia 10 de 1984 que o volumeco de 86 páginas me chegou à posse.

Vinha sem capa. Sempre gostei de pescar do pó vertical dos alfarrabistas estas pérolas pobres, sobretudo quando devidamente velhas, esquecidas, ignoradas e… autografadas – ou pelos respectivos Autores, ou por os donos anteriores à minha pessoa.

(Uma vez, luxo dos luxos, cacei, mais do que pesquei, em Coimbra, uma cópia - e em primeira edição! – de “Varanda de Pilatos” autografada pelo Autor, um tal… Vitorino Nemésio!!! Corria o mês de Novembro de 1927. Não esquecerei esse dia feliz: 23 de Agosto de 1986. Mas adiante, que o domingo se nos acaba.)

Bem, de volta a Umberto (sim, sem H) Araújo, sempre vos digo que o primeiro dono do meu (muito meu, há quase um quarto de século, sim?) “Incoerências” foi alguém chamado “Manoel Gomes de Mattos…” e não consigo decifrar o último nome do senhor, que o adquiriu, também em Coimbra, aos 20 de Junho de 1925.

Em 1925 foi, precisamente, publicado este Incoerências do Sr. Araújo. Deu-o a lume a “LVMEN – Empresa Internacional Editora LISBOA – PORTO – COIMBRA – RIO DE JANEIRO”. E mais vos informo que “ACABOU DE SE IMPRIMIR ÊSTE LIVRO AOS DEZASSETE DIAS DO MÊS DE MAIO DE MIL NOVECENTOS E VINTE E CINCO NA TIPOGRAFIA DA “LVMEN”, EMPRESA INTERNACIONAL EDITORA, SITA À RUA DE FERREIRA BORGES, NÚMERO CENTO E TREZ, NA CIDADE DE COIMBRA.”

Tudo coisas lindas, portanto – a começar pela ortografia, que era melhor do que a nossa, esta que, ainda por cima, nos querem prostituir “à la Simplex”…

Seguindo no vento, fiz a leitura do livrinho esta mesma baça tarde dominical e inaugural do mês de Março de 2009, quase 25 anos de o possuir e 84 depois de impresso. “Tempus fugit”, é uma porra.

Foge o tempo e foge-me o conhecimento de quem foi este Sr. Umberto Araújo. Tem, ainda, toda a pinta de coimbrinha, lá isso ninguém lhe tira. Dele, só conheço a leitura que fiz, que inclui o elenco de obras até então publicadas, a entrar no prelo e em preparação por ele, a saber:

PUBLICADAS:

Águias (“LVMEN”, Editora, 1922).

O Terror nas Beiras (Prefácio – Coimbra-Editora, 1924).

Homenagem a António Augusto Gonçalves (Colaboração).

A ENTRAR NO PRELO:

Página Antiga (Cartas de Amor).

EM PREPARAÇÃO:

A Mentira Portuguesa (Impressões Sociais Contemporâneas).

Lírios de Pedra.


E pronto: não sei mais.

Quero dizer: sei o que lapijei (aprendi isto do “lapijar” em “Os Putos”, de Altino do Tojal, era puto eu também) por baixo das Incoerências que li. Dela vos darei, infra, breve antologia. Permiti-me só que vos diga o que me ficou.

Ficou-me a ideia de o Sr. Umberto Araújo ser um cabotino do mesmo calibre daqueles que cerceia à pàzada de caneta em oito dezenas de páginas. Misantropo (mas lúcido), misógino (até à quinta casa), finissecular (apesar de publicar a o cabo do primeiro quartilho do novo século XX), decadente, português afrancesado “au (de)goût de l’époque” dita “belle”, o diabo a quatro, enfim.

Certo, certinho, é que a leitura me deu gozo, a ponto de querer partilhar algo dela convosco. São citações de um moralista-antimoralista-moralista, não sei se me faço entender.

O homem venerava, por cá, o Eça (vá lá…), o Camões (vá lá…), o Camilo (de quem Araújo diz que “foi o Wagner do pensamento e da morte”), o Antero, o Guerra Junqueiro (Umberto escreve do poeta de “A Velhice do Padre Eterno”, a páginas 81, isto: “Depois de morrer GUERRA JUNQUEIRO, tenho a impressão de que ninguém mais vive no universo…” – Chiça, digo eu…).

E borrava-se todo, por lá, com o Nietzsche (que epigrafa o livro com isto: “A única coisa que se proíbe é a Verdade.”), o Rabelais, o Diderot, o Picasso (já então, sim), o Tolstoi, a Sarah Bernhardt (saiu “Bernardth”…), o Victor Hugo (claro, só podia), o Molière, o Dante, o Schiller, o Verdi, o Anatole France, o Zola, o Goethe, o Verne, enfim.

Notas paralelas a anteceder a selecção de (anti)moralidades deste Sr.:

- “OCTÁVIO MIRABEAU é um estrangulador de almas.”

- de Ibsen, diz que “foi um sacrílego da vida”, porque “a sua obra dá a impressão extraordinária de um riso de pedra num cemitério adormecido…”;

- a António Nobre, chama-lhe “larvado, trágico e doente”, pois que “foi uma flor nascida em lama, sem virilidade e sem perfume…”;

- de Gomes Leal, que “foi o Aretino do século e um velho dandy sentimental”;

- de “A Velhice do Padre Eterno”, “parece que foi obra de um Satan vencido, caído à terra como uma ave despenhada…”;

- de certo filósofo alemão, “Deus fez muito mal em ter criado SCHOPENHAUER. Antes, em vez dele, tivesse dado vida a um burro…”

- de Maeterlink, quando o lia, tinha “a impressão de que andam no ar murmúrios supremos de velhas almas estranguladas…”;

- do, por assim dizer, paulo-coelho da altura, deixou uma engraçada: “Admiro GABRIEL D’ANNUNZIO. Porque é o maior bêbedo de glória da raça latina.”

- daquele que foi preso por gostar de rapazes, deixou araujamente estatuído que “OSCAR WILDE é um rouxinol com reumatismo e sapatinhos de seda…”;

- e, para acabar co’ baile de bufas laterais, fixou que o plácido “LUCRÉCIO foi um sujeito de muito bom estômago e de muito boa pança…”.

Prontos, prontinhos. Dito isto, vamos à amorosa selecta do anónimo Sr. Umberto Araújo:

AMOROSA SELECTA
DO ANÓNIMO SR.
UMBERTO ARAÚJO

-“Coimbra transformou-se últimamente em alfôbre de meninos de côro e em biberon maligno de intelectuais de contrabando.”
(Boa, boa!)

- “A teologia, na sua ânsia de imperialismo espiritual, envolveu na sua lógica todas as invenções, resumiu em si mesma a página ancestal e misteriosa da natureza.”

- “O equilíbrio é uma mentira. O movimento impulsiona a sua essência, e jàmais adquirirá a inércia que a poesia reclama.”

- “Quando a tarde estua nas vibratilidades poderosas dos seus vícios, o ar azul impregna o éter de miasmas, proclamando o império da patologia.”

- “O absoluto é uma negação dentro da complexidade do universo.”

- “A luz, quando rasga o hímen das alturas para chegar aos olhos da humanidade, vibra nas suas eternas espirais dominada pela atracção irresistível dos astros, e quando se transforma em calor poderoso, quando abrasa de evocações o oceano incomensurável da paisagem, vem dirigida em linha recta, numa gloriosa descida de avião pilotado pelo infinito, ungida pela sublime inconsciência das leis do movimento.”
(…da-se!…)

- “O estilo é o homem, disse alguém.
Mentiu.
O estilo é a alma.”
(O catano!, digo eu. E o “alguém” foi o Buffon, totó!)

- “Não há bons livros nem maus livros.”
(Hmm, cheira-me que não te safas assim com essa facilidade toda…)

- “Os corpos nús são a tradução das almas.”
(O que tu queres, sei eu, menino, olha se não sei, ando pràqui ó mesmo el’á séculos…)

- “Finge-se por instinto e por necessidade.”

- “A Arte, como as almas e como as mulheres, quero-as e sonho-as absolutamente núas.”
(Eu nã’ t’o tinha dito, meu?)

- “O manto diáfano da fantasia passou ao museu arqueológico das convenções estreitas (…)”
(Compreendi-te p’feitamente…)

- “É mais fácil derrubar um touro que dominar um insolente.”

- “Quereis fazer de um homem inteligente um cabotino, de uma alma boa um autêntico bandido, de um ajuizado um miserável louco, de um justo uma fera, de um santo um monstro, de um sensato um leviano, indicai-lhe apenas um caminho: o casamento.”

-“Não há amor como aquele que faz envelhecer.
A dôr redime e a felicidade engana.”

- “Os homens conhecem-se pelas invejas que levantam.
E as mulheres pelas leviandades que praticam.”

- “Defende-se com mais facilidade um criminoso que um inocente.
Porque os homens foram feitos de barro – e o barro confunde-se muitas vezes com a lama…”

- “Todas as vezes que ladram um cão nascem um orador e um poeta na terra portuguesa.”
(Mas isso do cão é comigo, meu? Mas isso do poeta também, meu?)

- “Sou herói todas as vezes que fôr preciso.
Basta uma mulher, um pedaço de terra, um punhado de oiro e um cântaro de vinho.”

-“O primeiro beijo pode ser a última virtude.”

-“Um pobre que pede é um insulto que passa.”

-“Mulher por mulher, antes quero a que se vende
A que se dá, procura sempre dominar pela brutalidade da sua soberania…”

-“A mulher que eu amei e que me roubou metade da vida, nem sequer já se lembra da sua virgindade. E assim anda levando a vida, roubando as outras vidas…”

-“As mulheres são a maior futilidade do universo.
Mas ainda assim ponha-as o destino à minha porta…”

-“Quando beijo uma mulher, tenho a impressão de que sou o conviva de uma banquete que terminou há muito.”

-“O adultério de certas mulheres é como o casamento de muitos indivíduos…”

-“A beleza é uma anomalia dos sentidos.”

-“Os exércitos são a maior chaga de corrupção que inventou o espírito do homem. Por cada quartel, levanta-se uma taberna e abre-se um lupanar.”

-“Devíamos andar nús.
Os vestidos são os assassinos do ritmo e da graça…”

-“O ódio é o amor exagerado.
Não esqueçamos que Satan foi um dos anjos predilectos de Deus…”

-“Filosofar é apenas escarnecer.
A Verdade nunca se encontra nem nunca se conhece.”

-“No dia em que me falta o dinheiro, não tenho nem um só dos meus amigos.”

-“ Gosto da morte.
Porque não me insulta e porque me não mente.”

-“Sempre que me falam em amor lembro-me logo da sífilis…”

-“Quiseram fazer-me padre.
Mas esqueciam-se de que eu era homem…”

-“Esmaga-me a todos os momentos a ideia de que a vida continuará na sua indiferença e no seu egoísmo depois da minha morte.”

-“O jornal é o trapo do progresso.
Por isso é sempre sujo, mísero e maldito.”
(Lá nisso…)

-“A mulher que eu amo verdadeiramente, é aquela que só vejo uma vez, que desaparece e passa…”

-“Há bandidos que parecem santos.
E há justos que parecem feras.
É apenas uma questão de oportunidade.”

-“Os artistas que eu conheço não alem tanto como o aranhão que faz sôbre a minha cama a sua caprichosa teia.”

-“As levianas são as mulheres mais sérias.
Simplesmente porque não se preocupam em forjar mentiras.”

-“O Estado é a mama generosa dos ladrões e dos vagabundos.”
(Lá nisso…)

-“Não odeio os homens nas suas preversidades (sic).
Apenas, como NIETZSCHE, aprendi muito cedo a desprezá-los.”

“Se não fôsse o amor, a ida nem sequer seria uma loucura.”

-“As andorinhas gorgeiam (sic) nos beirais do meu telhado. Mal sabem elas, coitadinhas, que cantam sôbre um túmulo!”

-“Tenho desflorado mulheres perdidas…
As virgens só existem nas telas dos artistas e nos mármores dos museus…”

-“A instrução é a inimiga do progresso.
Maldito seja quem nos ensinou a ler!”

-“O amor, para mim, é o cântico da carne.
Quero a mulher, mas só para a devorar…”

-“Se nos víssemos por dentro, não haveria na terra senão feras e bandidos.”

-“A pobreza é o estímulo da Verdade.”

-“Olho as estátuas e pergunto: qual de nós é que anda adormecido?”
(Ora deixa-me cá pensar…)

-“As bonecas são as melhores noivas que podem encontrar-se.
Simplesmente porque não falam e porque… não mentem…”

-“A verdadeira mulher é aquela que nunca desejou ser homem.”
(Este não chegou a conhecer o “Conde”…)

-“O homem só será justo quando viver sósinho (sic)…”

-“Até hoje ainda não consegui adquirir a máscara de vier.”

-“Conheço dois homens que se odeiam profundamente, como dois tigres.
E tanto assim que desejam ambos que um dêles se case…”

-“Mentir é dizer a verdade à natureza.”
(Esta foi bem…)

-“A aviação é o bandoleiro futuro do território das aves, das almas e da luz.”

-“Um monumento aos mortos?
Ergam antes, na praça, um cadafalso aos vivos…”

-“Um criminoso é apenas um tipo que não teve sorte.”

-“As mamãs são as alcoviteiras oficiais do amor das filhas.”

-“A geração do meu tempo parece que nasceu para envergonhar a humanidade.”
(A minha também; e eu também, deixa lá…)

-“Uma mulher linda é um azulejo de carne viva…)
(Diz-lh’ agora que sim…)

-“Um mulher núa é um fio de leite coalhado.”
(Porcalhão…)

-“Uma virgem é uma bela hipótese a demonstrar.”
(Lá nisso, menino, lá nisso…)

-“Conheço muitos patriotas que pregam a moral.
Mas, no fundo, nem um só se esquece de que tem um estômago.”
(Certo, sô Zé.)

-“As catedrais são gotas de mármore tombadas do céu…)
(Lindo, lindo…)

-“A virtude maior é sempre a que se confunde com as coisas mais pequenas.”
(Bem esgalhada, esta.)

-“Se me perguntarem qual é o conceito que eu tenho da humanidade, eu direi abertamente: em mil almas há novecentos ladrões, cincoenta verdugos e cincoenta doidos.”

-“Não há perfeição nem equilíbrio na humanidade.
Ainda há-de vir o primeiro ser que me desminta.”
(Não hei-de ser eu, meu.)

-“Os reis são os únicos homens que nunca poderam (sic) a andar sósinhos (id.).”

-“A vida nada mais é que o festim ininterrupto e constante dos mortos que passaram.”

-“Um casamento é um funeral que se faz à pressa por causa do contágio.”

-“A natureza é tão hábil e tão astuta, que sem darmos por isso conseguimos envelhecer.”

-“Certas mulheres para se despirem não precisam senão dos olhos…”

-“A pedra tem os estremecimentos da carne.
E por isso tem a preferência até nos túmulos.
(Atão nã’ sejas calhau…)

-“Um banquete de anos é uma afronta.
Ah! quem pudesse antes desfazê-los!

-“Onde começa e onde termina a minha individualidade?”
(Onde terminou, sei eu…)

-“Um beijo, por amor, vale mais que um milhão por esmola.”
(O Tanas, meu, o Tanas e o Jêtas da Ponte.)

-“O amor é uma triste brincadeira que traz o mundo eternamente ridículo e parvo.”
(Bistes?)

-“No dia em que terminasse a vaidade muitos pobresinhos (sic) deixariam de comer.”

-“A arte é como um fruto proïbido (sic) que Deus criou para castigo dos impotentes…”

-“Uma guitarra nas mãos de um português é um sino de aldeia a anunciar finados…”

-“O talento é a primeira qualidade para se morrer de fome.”
(Não debes-de-ter morrido magrinho, ó jeitoso, ó coimbrinha!)

-“Admira-se muita gente de que certos sujeitos sejam hoje monárquicos, ámanhã republicanos, ontem conservadores, agora demagogos, há duas horas democráticos e há cinco minutos socialistas.
Em todo o caso cuido que não há motivo para apreensões. É da própria psicologia do político a tendência ao direito de ser pulha.
(Certinho, certinho…)

E FINALMENTE, DEIXEMOS O SR. UMBERTO ARAÚJO A REQUIESCATAR-SE IN PACE COM ESTA:

Os filhos são o prolongamento lógico das anomalias paternas.
De modo que a natureza, por uma astuciosa irreverência, consegue manter sempre à face do universo um enorme superavit de bandidos…

3 comentários:

Anónimo disse...

Está lindo, ó Humberto. Mas o que mais me chamou a atenção foi essa primeira edição do Nemésio, autografada pelo Vitorino. É melhor do que pescar uma baleia
à cana nos mares do Açores. Mas eu acho que devias andar caladito com isso. Os alfarrabistas daquele género de vão de escada que compra e vende quase a peso, que costumam ser distraídos nestas coisas, se lêm isto, podem começar a cobrar mais uma porrada de euros por cada risco que tiverem os livros. Eu também já pesquei uns assim. Por essa do Nemésio, bem que merecias ter pago o teu rendimento mensal todo.

Barão do Pico

Anónimo disse...

certo, já cá não tá quem ladrou.

Anónimo disse...

Ganda pic!