18/02/04

A América de Norman Rockwell, por Tinóni

Para começar, o Warhol é um demiurgo mas é o tanas. Tudo ao contrário. O Warhol não sacralizou nada a banalidade. O que ele fez foi banalizar o sagrado, o bom velho sagrado americano, e qualquer parolo do Kentucky sabe isso. O gajo é o anti-Rubliov, capaz de realçar o buço da Virgem Maria e borratar a pintura da Marilyn, fazendo-a parecer um palhaço triste (é claro que era delicado e submisso com quem lhe pagava bem). A arte americana sempre foi figurativa, de uma figuração realista e ao mesmo tempo idealizada. A abstracção e a arte conceptual, de que a pop é bastarda, só chegaram ao outro lado do atlântico no pós-guerra, com o Pollock, o Rothko e outros estrangeirados. A arte original americana sempre foi a arte do quotidiano e da celebração da paisagem, herança do puritanismo dos founding fathers, gente prática pouco dada a expressionismos e estilizações irónicas. E são esses quotidiano e paisagem, habitados por heroísmos vários, que constituem a religião americana. Os ícones americanos são os quadros do Norman Rockwell, com famílias felizes a sorver campbell, acabadinhos de sair de um ritual de masturbação secreta e silenciosa com pin ups de corpo inteiro. E representações de vidas de outros santos, por santeiros anónimos. Heróis do desporto e das telas de cinema. Nisso está muito perto do realismo soviético. Como se pode celebrar a Marilyn com aquelas representações frias, mais do que trágicas? Em que altar se penduram? Para que quer um americano (um americano americano) uma pintura de uma lata de sopa, se já tem as prateleiras cheias com o autêntico e as paredes ocupadas com calendários da Betty Grable nas alturas. Para que quer um americano patriota um quadro do Jasper Johns com a stars and stripes pintada? Que não esvoaça, que não se ergue, que de tão realista se torna cínica? Esses ficam para nós, os que também compram réplicas de ícones do Rubliov para gozo estético ou para entreter a vida com réplicas de misticismo. Dois testes finais: o John Wayne gostava do Warholl? É claro que não! Tivesse ele tido forças e tê-lo-ia chutado para fora do templo, a esse paneleiro vendilhão. E o Warhol lançou o Springstein? Pois não, lançou o Lou Reed, o que não é bem a mesma coisa. E pronto, é isto ou o seu contrário. Mas gosto mesmo é dos Malevitch da fase azul electrolux, bons para relaxar ao som de trinados de periquito. E bacalhau.

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