27/02/04

BILÚ, BILÚ, BILÚ..., por SimplistaPrateado

“Eu devia ter uns 7 ou 8 anos. E foi um regalo quando o descobri. Acompanhava o meu tio Marcolino na poda da vinha da Lameira e brincava na ribeira com o meu primo. Mais em baixo numa cascatazita o meu primo, de idade semelhante, fazia azenhas de cana e vime. E foi quando o descobri, numa regueifa de ervas e a tentar fugir, estava um Cágado. Carapaça dura, verde escura e quatro pernitas a pedalar. No ar, porque de imediato o levantei. A cabeça recolheu à armadura e o meu primo acorreu de imediato com os meus berros de júbilo. Um cágado e meu, só meu. Vingava-me ali e pra sempre, da maior habilidade do meu primo em apanhar grilos, cega-regas e demais bicharada campal. O rival ficou aniquilado. Um cágado dava pra milhões de grilos e cega-regas.
- Tá morto estúpido, deita fora!, dizia o bruto do meu primo a julgar que colava.
- Morto o caralho, ólha aqui, bilú, bilú, bilú...
E o cágado, sentindo o apelo do bilú e algum conforto instintivo pela ternura da criança, lá pôs a cabecita de fora, como que a investigar o futuro...
-Tás a ver, animal, morto estás tu!
- Ó pai, ó pai, ólhó co primo agarrrou!, berrou de imediato o meu primo.
O meu tio Marcolino, que entretanto tinha terminado a poda e andava na apanha da caracolada, logo veio ver a coisa.
- É lá rapaz, um cágado, ganda apanha, isso é uma coisa muito rara, antigamente é que havia muitos, nino.
E enquanto eu continuava a segurar firmemente o cágado, com medo de alguma manobra paterna que mo tirasse pró meu primo, o meu tio Marcolino, começou a gesticular e a imitar a voz própria da meiguice:
- Bilú, Bilú, Bilú...,
Mas o cágado não respondeu à meiguice de falsete e a cabecita continuou fechada no cofre.
- Faz tu, nino!
- Faço o quê, tio?
- O Bilú, a ver se ele põe a cabecita de fora!
E eu, inocente e contente, lá fiz:
- bilú, bilú, bilú...
E o cágado meiguinho lá pôs a cabecita de fora. Num ápice, o meu tio, com uma rapidez impressionante que nos apanhou a todos desprevenidos, cágado incluído, afinfou-lhe uma castanhada na cabecita, com os nós dos dedos virados pra baixo. Deixei cair o cágado no chão e só tive tempo de lhe ver a cabeça de lado, com o pescoço num ângulo impossível, porque logo o meu tio Marcolino o apanhou e nos fez segui-lo, dizendo:
- Com estes bichos é assim, mocada fulminante e vou sangrá-lo já pra casa, senão depois sabem mal!
A choramingar lá fui atrás dele pra casa, incapaz de reagir à dor imensa e ao ar de gozo do meu primo, que retomou o ar de supremacia de rei do campo e da bicharada.
Meia hora depois, estávamos os três de volta de uma caçoila fumegante, de onde subiam os vapores fortes da assadura de vinho tinto, misturados com a delicadeza da salsa, do tomilho e de algumas malaguetas. A boiar lá pelo meio da caçoila estavam os bocados cortados do meu cágado. Uma pernita assumia ao cimo de vez em quando e a carapaça, reluzente da cozedura ia passando de lado.
Foi uma das melhores caçoilas de carne assada em vinho tinto que jamais comi. Rapámos tudo até lamber os beiços. Embevecido o meu tio elogiava-me:
- Ganda apanha, nino, quando apanhares mais já sabes.
Voltei ainda muita vez à ribeira da Lameira, mas nunca mais apanhei nenhum cágado. E enquanto lá andava, assaltava-me sempre o mesmo dilema: - e se apanho algum, brinco com ele, ou levo-o ao meu tio Marcolino?.
Ainda hoje, quando vejo algum documentário na televisão com tartarugas, fico comovido e vêm-me ao mesmo tempo as lágrimas aos olhos e a saliva à boca. E o dilema continua.

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