Confesso que nunca fui especialmente amante de doçaria, conventual ou regional. Os meus gostos são simples e não exigem requintes elaborados de ovos e açúcar, para além do arroz doce submerso em canela feito pela minha mãe, ou de uma mousse de chocolate que ela faz todos os natais absolutamente soberba, camadas finas de natas cobertas de outras mais espessas e duradouras de chocolate até ao topo, e pelo meio, escondidas entre duas bem aventuradas colheres de paraíso, amêndoas torradas, cortadas a meio ou inteiras que conferem aos maxilares, ao palato e ao gosto, breves, mas inextinguíveis razões de existência. Abro aqui uma excepções para os meus dois doces regionais favoritos e dos quais nunca me abstenho, assim essa oportunidade venha ao meu encontro, de comer e saborear meia dúzia ou os necessários até consolar a pança. O pastel de Belém e o pastel de Tentugal. Sobre o primeiro não me vou alongar muito, pois é sobre o segundo que vos queria falar. Conheci os pastéis de Belém quando era estudante e fui estagiar para o Hospital Egas Moniz em Alcântara, em 1986. Recordo-me bem que saía do hospital às 3h da tarde, em Março já o sol me apanhava na rua a espreguiçar os apontamentos e os processos dos doentes, mortinho para me pôr dali a andar em direcção a Carnaxide estava eu!, apanhava o eléctrico até Belém numa viagem curta sem pausas e com Tejo a poente, descia em Belém e passo acelerado entrava na Antiga Confeitaria de Belém (penso que é assim que se chama), e já saía dali aviado. Nada de açúcar em pó! O pastel de Belém já tem doce quanto baste e o único complemento que admite é a canela! Não precisa, nem deve levar açúcar correndo o risco de se tornar excessivamente adocicado e ser cortado naquele travo único do creme macio e sereno ao paladar, quando saboreado abundantemente com dentadas frugais mas respeitosas, porque majestoso é o pastel. A besta que considera um pastel de Belém igual ou uma variante do pastel de nata, é bronco ao paladar, simplista na apreciação e ofensivo à verdadeira essência das coisas, da vida e dos deleites que a sustentam. Adiante. O pastel de Tentugal chegou ao meu conhecimento pela televisão. Era eu miúdo e via sempre um programa chamado Sopa de Pedra, com um fulano gordo e barbudo que vestia o hábito de monge e visitava as capelinhas gastronómicas deste país. Lembram-se? O tipo aparecia nas cozinhas, falava com os cozinheiros das iguarias, dos pratos que celebrizaram cada região ou ermo perdido e alambuzava-se no final, antes de seguir caminho de rota batida para outro paraíso à mesa. Um desses episódios foi filmado em Tentugal. Muitos anos mais tarde, comi finalmente um desses pastéis. Hoje, esse gesto tornou-se uma rotina mais ou menos desprezada. Não terá em si, o mesmo significado místico de provar um vinho ou saborear um cubano, mas continua a ser uma invocação de prazer e bem estar. Um dia destes, estava eu sentado a ver o GNT, quando sou surpreendido com uma reportagem sobre os pastéis de Tentugal. Os brasileiro vieram cá e pasme-se, demoraram três quartos do programa a mostrar passo a passo a feitura, não do recheio ou do pastel no seu todo, mas do folhado que o cobre. E fiquei a saber o que até então nunca eu tinha imaginado. A coisa faz-se assim: no centro de uma sala enorme e preparada para o efeito, coloca-se sobre um tecido branco com a largura e comprimento da sala, um bloco de massa feita exclusivamente com farinha e água, segundo a D. Fátima que até tem nome de santa e abençoadas devem ser as suas mãos. Depois, de forma progressiva, firme, e segura, vai-se esticando essa massa do centro para a periferia. Movimentos a duas mãos, sincronizados para não abrir brechas na elasticidade da massa, no sentido dos ponteiros do relógio. Estica, puxa, estica, puxa. A massa vai-se tornando cada vez mais fina e extensa, como devem calcular. A certa altura, após uma ou outra esticadela, o ar invade o espaço entre a massa e o chão criando um efeito de balão: a massa chega quase a tocar o tecto, como um enorme pára-quedas a abrir-se para logo a seguir, descer quando o ar se escapa, muito lentamente, até ao pano branco outra vez, onde assenta. Incrível! Nem um golpe na sua integridade, nem uma brecha por ali se mostra. No final, a massa ocupa agora todo o perímetro da sala. Não imagino, mas seguramente alguns 10mx10m, talvez. Está agora reduzida à espessura de uma folha de papel transparente. Literalmente! É então que os bordos irregulares são cortados de forma geométrica, para em seguida se proceder ao corte de pequenos quadrados, centenas deles, que sobrepostos em quantidades proporcionais vão receber o recheio de ovos, ser enrolados e acabar no forno. Achei aquilo tudo de uma mestria absolutamente única. A manualidade, a simplicidade e ao mesmo tempo a complexidade do processo, fizeram-me achar que era algo digno de pertencer a este espaço e olhar para os pasteis de Tentugal com outros olhos, ainda que com a mesma boca.
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