09/02/04

TANTO MAR, por Cão

Nunca percebi muito bem por que razão trabalham as pessoas que vivem ao pé do mar. Como conseguirão elas, dentro dos locais de trabalho, ignorar que ali tão perto vive e respira essa descomunal fonte de toda a nostalgia? Como? Eu não sei. Sei apenas que, se me fosse dado viver na vizinhança do oceano, descuraria tudo e todos, passando a viver os meus dias na contemporaneidade do sal, na lição melancólica das ondas, na dulcíssima tristeza das madeiras náufragas. Juro.
Como não posso viver assim, vivo assado. De manhãzinha, acordo para um mundo repetido. Meto-me no meu carro velho, paro para uma chávena de café e um comentário sobre futebol, chego à secretária, mexo em papeis, vou almoçar sem graça nem glória a uma pensão com quadros de barcos sem mar na parede, volto aos papeis, volto ao carro velho, volto a casa, janto sem glória nem graça numa cozinha que me viu crescer, vou sorver outro café e outro comentário sobre futebol e pronto: estou pronto para a morte diária do sono.
Adormeço. E lá está ele: o mar. Na minha cabeça, ondas, sal, barcos e madeiras, gaivotas e crianças, cores e muito mar. Atiro-me à água, nado olimpicamente, chego a uma ilha, estendo-me na areia. O sol desenha uma sombra nova junto de mim. É a de uma rapariga. A coisa melhora. Mas a rapariga é afinal a minha mãe, que tem setenta e cinco anos e não perde a mania de me acordar cedo para que me deixe de navegações e vá trabalhar, que se faz tempo.

Sem comentários: