09/03/04

JOHN WATERS, MESTRE DO TRASH, por Mangas

Entre a provocação assumida de Pink Flamingos que a Variety classificou como um dos mais vis, estúpidos e repulsivos filmes jamais feitos, e o seu último Cecil B. Demented, Waters estabelece o percurso de radical cronista do bizarro, do Gore, do mau gosto e da indecência em 14 filmes nos quais, entre outros elementos de exaltação visual, não esconde a sua preferência por sexo animal, vómitos e coprofagia. Divine, uma esponjosa drag queen de 150kgs, cujo verdadeiro nome é Michael, está para a obra de Waters como Dietrich estava para a de Sterneberg. O glamour mede-se ao peso e o talento não vacila quando, sob a superior direcção artística de Waters, se lhe exige fazer sexo oral ao próprio filho/personagem numa insuperável sátira aos clichés do cinema porno.
A primeira longa metragem de John Waters é Mondo Trash (1970), produzida com um simbólico orçamento de 2000 dólares emprestados pelo pai. Sem diálogos do primeiro ao ultimo take, contempla uma banda sonora em rock-n-roll-vinyl-riscado e algumas voicecovers para anestesiar os espectadores e tornar a coisa mais suportável. A protagonista surge morta mais de dois
terços do filme, depois de atropelada por uma Divine que se distrai com um tipo nu à boleia, dá uma de boa samaritana, recolhe o cadáver e, pela sua boa acção, Divine é visitada pela Virgem Maria. A morta é levada a um médico louco que lhe substitui os pés por outros, feios e grotescos. Aos corajosos curiosos, aconselha-se a procura imediata de uma cópia (o que será complicado encontrar), para saberem como acaba este chorrilho de absurdos e disparates. Para os fãs convertidos, descobre-se parcialmente o véu nas palavras de Waters: "Naquela
altura, dependíamos muitos de batedores de locais. Na última cena do filme, quando a Divine está numa pocilga a morrer no meio da merda dos porcos, nunca perguntei ao fazendeiro se podia filmar ali. Nem hoje ainda sei se estaria alguém na quinta. Simplesmente estacionamos do lado de fora, saltamos a cerca, filmámos a cena e fugimos." Nota de pós produção: na estreia do filme projectado numa igreja, Cookie Muller, que acabara de ter alta de um hospício local, ganhou o prémio de entrada que consistiu numa jantar à borla no restaurante Little Tavern. Consta que ficou desde esse dia amiga pessoal de Waters.
A amoralidade ideológica de Waters ganha outros requintes criativos em Hairspary, (1988) a história de uma tipa obesa com uns pais tiranos, - interpretados por Sonny Bono e Debbie Harry -, com um sub-argumento encaixado nos males da segregação social. Ric Ocasek e Pia Zadora são os beatniks de serviço cuja obsessão maior é engomar a ferro o cabelo. Uma banda sonora desencantada no pop obscuro dos anos sessenta e alguns rythman/blues especialmente arranjados para a ocasião, ajudam a compor a festa. Rapidamente
adquiriu o estatuto de filme de culto na filmografia de Waters, contudo, é bem menos denso do que Roman Candles onde a blasfémia segundo Waters assume contornos pictóricos bem definidos: três projectores usados em simultâneo com um gravador de cassetes para exibir uma freira drag-queen pendurada num cigarro, um padre a beber uma cerveja, uma mulher a ser atacada por uma ventoinha eléctrica, uma outra drag-queen montada numa moto e a sublime Divine a jogar às escondidas, tudo isto ao som dos Shangri Las.
Recordando ainda com orgulho algumas manifestações públicas pouco recomendáveis aos olhos do moralismo vigente, que lhe valeram frequentes visitas a prisões estatais por conspiração e exposição corporal considerada indecente, Waters viveu as primeiras contestações ideológicas nos setenta quando, assumindo as suas tendências de esquerda, fazia-se passar por punk numa época em que hippie
era o que estava a dar. Waters considera que aqueles tempos eram efectivamente uma guerra cultural. Nós contra eles, entendendo-se por eles a América conservadora ilustrada no stablishment politicamente correcto produzido nos grandes estúdios. Pink Flamingos é a obra-prima de Waters. Personagens centrais: Divine, sempre ela, interpreta Babs Jonhson, uma baleia intratável,
obcecada pelo estilo e pela moda; a mãe mentalmente estorpiada; o filho delinquente. Objectivos de vida: chupar ovos e foder galinhas. Esta balsâmica beatitude é posta em causa quando os Marbles, (no argumento original de Waters descritos como "jealousy perverts"), tentam conquistar o título da «Pessoa Mais Imunda de Sempre» e abrem as hostilidades enviando um monte de merda pelo correio a Babs, para a seguir lhe incendiarem a caravana onde vive com a família. Numa lógica sequencial de tomada ao poder, os Marbles raptam algumas
mulheres à boleia, solicitam a colaboração do seu criado para as engravidar e alguns meses mais tarde, vendem os bebés a casais lésbicos. O final tem créditos firmados numa demonstração clara de imponência artística aos prazeres gastronómicos - Divine, a musa imunda, passeia um poodle, espera que ele cague, apanha do chão alguns cagalhões, e engole-os com particular avidez e prazer
lambareiro, provando ser rainha indestronável da imundice. Aviso: as cenas dos ovos são desaconselháveis a mentes facilmente sugestionáveis ou estômagos particularmente sensíveis. Questionado sobre o facto do filme conter material extremamente explícito e ainda assim, 25 anos depois da sua estreia, conseguir criar repulsa nos espectadores, Waters respondeu que tal facto não o surpreendia porque é tudo real. "As galinhas foram mesmo enrabadas e nós comemo-las a seguir. A Divine comeu mesmo merda de cão. Quero dizer, hoje em
dia ninguém arreia a carga em cima do cabelo da Cameron Diaz, pois não?! É diferente, ponto final! Pink Flamingos foi um filme anti-hippie, feito para hippies que seriam punks no espaço de dois anos. É um filme de ganzas. «Escrevi-o completamente ganzado», acrescentou.
Hoje em dia, Waters aparentemente já não se deixa seduzir por cenas em que a sublime Divine mata o seu marido e outra rapariga, num ataque de fúria, esquarteja-os para em seguida lhes comer as entranhas. Cecil B. Demented (2000), com Melanie Griffith e Stephen Dorff está para a sua obra como Unforgiven para a de Clint Eastwood, mostrando se tal ainda necessário que o
seu grande mérito foi nunca se ter vergado durante todos aqueles anos. Nunca o seu manifesto esteve tão actual: «Poder para o povo que castiga o mau cinema! Terroristas do cinema: juntem-se à revolução contra os filmes de Hollywood! Dos lugares vazios de cada cinema na América, erguer-nos-emos e tomaremos de volta o ecrã. Não mais remakes em língua inglesa de filmes estrangeiros! Acabemos com os filmes baseados em estúpidos jogos de vídeo! Acabem com as sequelas fastidiosas de grandes orçamentos e êxitos de bilheteira! Sejam os anjos vingadores do cinema independente. Quando dizemos "Acção!", queremos dizer acção! Tragam de volta os filmes de guerra às salas de cinema de bairro e castiguem aqueles que se manifestam contra o vosso próprio entretenimento. Isto é um aviso a todos os fãs de cinema comercial: Vamos enterrar-vos! O cinema independente não tem limites! O sistema de Hollywood retirou-lhe o sexo e agregou a violência e já nada resta ao cinema, por isso, tragam de volta o sonho. Parem a distribuição em massa de filmes medíocres! Façam sabotagem ao cinema, resgatem o ecrã! Vandalizem os filmes, tragam de volta o sonho! Lunáticos do celulóide e sobreviventes do cinema, façam bons filmes ou morram! Morte a todos os que são cinematograficamente incorrectos! Estamos vivos e a fazer filmes!» O momento mais simbólico de Cecil B. Demented é-nos mostrado por um ganzado assistente de produção, a amarrar o executivo de smoking com metros de celulóide. É o fuck the system político de Waters, de quem Burroughs disse ser o Papa do lixo. E, embora ele nunca tenha amarrado o sistema, esteve-se na verdadeira acepção da palavra, sempre a cagar para ele.

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