11/03/04

A Mulher da Vida do Super Homem, por Red Kryptonite

No que toca a gajas, o Super Homem sempre foi um ratão. Ele passou a vida toda sem nunca se comprometer, bandarilhando alegremente, primeiro a Lana Lang, uma loura espampanante, ainda na fase de Super Boy, quando vivia em Smallville (Pequenópolis na tradução portuguesa da saudosa editora Ebal); e depois a verdadeira Penépole da saga, Lois Lane, eterna noiva do Super Man, já crescido.
Mas, nem todos o sabem, houve outra mulher na vida do Super. E esta fê-lo mesmo perder a cabeça. Por ela, o kriptoniano esteve disposto a abdicar de ser herói. Lori Lemaris era o nome dessa mulher. Ainda me lembro, era miúdo, do dia em que li The Girl in Super Man´s Past, história de Bill Finger e arte de Wayne Boring. Deixou-me comovido até hoje.

Clark Kent conheceu Lori na faculdade em que ambos estudavam. A jovem é bonita, claro, tem olhos cor do mar, é inteligente, corajosa e brilhante. Um problemazito, apenas: é paralítica e vive numa cadeira de rodas. Isso não impede que o jovem Clark se apaixone por ela. Vivem ambos um romance – platónico – e Clark toma, um dia, a mais séria decisão da sua vida: pede Lori em casamento, num cenário fantástico, junto ao mar. E não pára aqui: confessa-lhe a sua super-identidade secreta e comunica-lhe que, por ela, está disposto mudar de vida e ser só um simples pai de família.

Neste ponto o enredo comove-me. Clark recorda-me o drama do Cristo filmado por Scorsese (The Last Tentation of Christ). É um Cristo angustiado, dilacerado pela imensidão da sua missão divina que hesita em morrer na cruz para nos salvar ou viver a sua vida comum com Maria Madalena. Pela sua omnipotência, Super Homem é um Deus semelhante a Cristo. Mas pelo seu amor por uma simples e frágil mortal, de cadeiras rodas, ele torna-se um de nós. Neste momento Clark decidiu descer da sua cruz - como o Cristo de Scorsese - e rejeitou o seu super estatuto divino para escolher o destino comum de qualquer homem vulgar.

Mas, surpresa das surpresas, a rapariga deficiente responde-lhe que, embora o ame, não pode casar com ele. Que coisa espantosa para o leitor desprevenido – pensávamos que o Homem de Aço é que se poderia dar ao luxo de recusar quem quer que fosse! Mas é uma jovem deficiente quem recusa o homem mais poderoso do universo. Super Homem torna-se assim um Deus rejeitado. Aquele que nunca foi vencido, nem pelos mais perigosos e poderosos criminosos do universo, acaba de ser rejeitado por uma rapariga de cadeira de rodas. O amor (por Lori) foi afinal mais poderoso que o ódio (dos super vilões como Lex Luthor) e a fraqueza que a força.

Super Homem desvendará o mistério da recusa de Lori numa visita furtiva ao quarto desta: em vez da cama onde a rapariga devia dormir, o que lá está é -imagine-se!- uma banheira. Uma banheira em vez de uma cama, é verdade…
Tudo se tornou, então, cristalino. Lori é, afinal, uma sereia vinda da Atlântida para aprender com o povo da superfície. Ela não tem pernas – nem o resto – é um peixe da cintura para baixo. Na vinheta em que o Super Homem a atira da cadeira de rodas para o mar, o que vemos é terrível. Lori é um ser monstruoso, de certa maneira, o seu corpo causa-nos repulsa.
Mas é curioso como ela recusa ficar com o Super Homem não devido à irredutível diferença física que os separa, mas em nome de um dever que invoca – o mesmo que o Super estivera disposto a renegar por ela. «Tenho que regressar para junto do meu povo para partilhar os conhecimentos que aprendi na superfície», diz a sereia!

A despedida entre eles faz-se no mar com um beijo e lágrimas à mistura. É comovente. Mas para mim, aquela justificação de Lori Lemaris soou-me sempre a um álibi de quem sabia que as relações entre os Super Homens e as sereias estão condenadas ao fracasso. Na verdade recordo esta história – uma das mais fabulosas que já li – como uma metáfora dos amores impossíveis e das incompatibilidades inultrapassáveis. O romance impossível entre Lori e o Super Homem é mais carnal do que parece – apesar de todo o platonismo que os une, deve ser difícil amar alguém que em vez de pernas e pés e sexo, tem escamas e barbatanas. Até mesmo quando ambos são telepatas…

Por isso, embora Lori se despeça com o pretexto do dever, aquele final não me faz lembrar Casablanca - metáfora da tensão entre o desejo e o dever - quando Ingrid Bergman voa para o dever e abandona um Bogart, que subitamente se descobriu bom cristão. Soa-me antes a pretexto, para justificar a oportunidade perdida por dois seres feitos um para o outro mas que tiveram o azar de se conhecerem enquanto habitavam os corpos errados. É por isso que esta história é tão profundamente triste – Lori e o Super Homem parecem vítimas de uma comédia trágico-cómica criada por um qualquer Deus superior que resolveu colocar as pessoas certas nos invólucros errados.

Não foi, pois, a deficiência de Lori que os separou – nunca os separou - mas a descoberta de uma incompatibilidade ainda mais terrível e visceral. Tão humano, tão infimamente humano! Lori, ou um Deus cruel e cómico por ela – Bill Finger -, fez descer, pela primeira vez – e única? – o Super Homem ao reino miserável da mortalidade. Humanizou-o, tornou-o comum, matrimoniável… Sensível, ia eu a dizer… Será então isto, a sensibilidade?...

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