13/08/07

Ciência Ca Fé, por Aquele Que Já Foi Jovem

«O senhor padre não me dá coceira, o que eu penso é que o senhor padre, como todos os padres arvorados em cientistas (sobretudo cientistas sociais), têm valor na medida em que permite conhecer qual é a perspectiva de determinada religião acerca de um assunto, mas é material para analisar com pinças e particular criticismo, já que são análises contaminadas do real; contaminadas por uma certa e muito determinada visão (no caso, cristã) do mundo. Ou, por outras palavras, não são homens abertos a todas as possibilidades, mas apenas às possibilidades coincidentes com os preceitos (teológicos, morais, culturais, etc.) do seu credo (…).»

Escrevi isto num dos últimos debates do tapor. Para muita gente, uma afirmação destas é liminarmente absurda. Sobretudo para os crentes, para quem será até ofensiva. Como se aquele formulado de certa forma implicasse menos inteligência ou menor capacidade de objectividade, distanciamento e abertura. De certa forma, é verdade, implica essas menores capacidades, já que quanto a mim é assente que uma condição religiosa/supersticiosa implica uma mundividência codificada (numa grande ou pequena Explicação) e esta obviamente condiciona acções e opiniões. Pelo contrário, um não-crente tende para uma cosmovisão e uma procura de explicação naturalista, baseada nos sentidos e na razão (preferencialmente, digo eu, crítica): na experiência física e mental.
Além disso, ou sobretudo, admitem a dúvida, facto que os torna efectivamente "abertos a todas as possibilidades". É um pouco como a diferença entre um teólogo e um filósofo, uma questão de extensão dos respectivos campos de investigação e de questionamento. Um teólogo não está aberto à impossibilidade de deus e só labora nos limites dos cânones da sua crença, ao passo que para um filósofo essa, a possibilidade de deus, é uma entre incontáveis hipóteses e todas são admissíveis e todas são questionáveis.
Mas não tem, definitivamente, muito a ver com a inteligência. Esta sim uma conversa que não leva a lado nenhum.
Por outro lado uma fé só é verdadeira para os respectivos crentes;
para um crente de outra confissão, essa fé já é falsa. Isto no domínio da moral. No domínio da teologia e da verdade profunda existencial de um crente, todos eles estão unidos pela mesma mundivisão, a do abraço da fé e da crença, a da admissão de uma explicação (mais ou menos) precisa e sobre-natural para os enigmas da vida e da morte. E na ciência essa postura existencial faz de facto a diferença: a verdadeira ciência não se compadece com respostas feitas ou explicações irracionais e não comprováveis. São formas de ver o mundo muito diferentes, a religião e a ciência, ambas respeitáveis e ambas fascinantes. Mas quase antagónicas. E o "quase" também é fascinante.
Se não deixa de ser verdade que muitos dos grandes cientistas da
história da humanidade, ou pelo menos do mundo ocidental, de Galileu a Newton ou Descartes, eram homens religiosos, não é menos verdade que após o advento da liberdade religiosa - coincidente com a explosão da ciência no século XVIII e, antes, com o advento do Protestantismo – e quando não se ser crente deixou de ser socialmente reprovável, quase todos os grandes cientistas são não-crentes: Por alturas de 1998, apenas cerca de 10 por cento dos membros da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos acreditavam em deus ou na imortalidade, percentagem que baixava para 5 por cento com os biólogos em particular. Há nem cem anos a média era a inversa. A tendência, de há décadas é realmente para diminuir, o número de cientistas confessadamente crentes. Sinais da secularização profunda da sociedade, que tiram o sono aos cardeais.
O facto é que, tirando alguns alquimistas e místicos exóticos, durante séculos, que a religião abafa o progresso científico. As excepções são algumas aves raras desviantes absolutamente geniais e como tal incontornáveis, como Galileu, Leonardo ou Copérnico, já nos alvores da Renascença. A forma como a religião ainda condiciona a ciência constata-se em exemplos flagrantes como a investigação estaminal, zona de choque com a moral cristã.
Abafada e perseguida porquê? Desde logo, porque há a noção arreigada de que o mundo não precisa de ser explicado, muito menos mudado: Já está tudo decifrado e definido nos livros sagrados. Mais do que isso é heresia, ponto final. A ciência explodiu quando o saber, liberto dos grilhões da fé e das verdades definitivas sobre tudo, pôde começar a
abrir-se ao mundo natural e a perceber os mecanismos da vida sem a muleta do grande relojoeiro criador., sem o constrangimento de não poder fazer perguntas incómodas à ortodoxia. A religião não procura respostas, a religião oferece respostas.
Também haveria que destrinçar aqui o que é "ser-se religioso". Einstein, por exemplo, era agnóstico, mas até tendia para uma certa visão deísta da existência, isto é, não acreditava num deus pessoal ou do deus representado pelas religiões tradicionais teistas, mas acreditava num mistério transcendente ao actual conhecimento humano, algo que poderá estar, eventualmente, ao alcance da ciência no futuro.
A Teoria da Relatividade e os desenvolvimentos na mecânica quântica deram um impulso enorme nesse sentido e nunca a ciência esteve tão perto de deslindar os mistérios do cosmos e do átomo. Outra coisa bem diferente é ser-se religioso no sentido de engajado numa determinada religião e moral. E é isso que são por exemplo, Manuel Antunes ou Sedas Nunes (que apesar de tudo não era sacerdote, como o primeiro). Estes dois, porém, são casos cada vez mais raros, nomeadamente pela seriedade intelectual e grandeza do seu trabalho.
Nos Estados Unidos, por exemplo, esta polémica da ciência versus religião tem estado ao rubro há algum tempo (e tem sido extremamente interessante de acompanhar), mormente devido à ascensão de um poderoso lobby criacionista, de raiz cristã, que defende o que dizem ser a leitura literal da Bíblia e combatem com unhas e dentes a evolução natural e as teses de Darwin. Mais cedo ou mais tarde, vai chegar aqui em força este debate (em blogs como o de rerum natura já se constata, aliás, a emergência desta discussão entre nós). E o facto é que surgem "cientistas", homens profundamente religiosos, que saiem a terreiro a confirmar que "sim senhor, a terra tem seis mil anos e o homem foi parido de um milagre e não de uma macaca".
Não sou radical nesta dicotomia. Haverá muitos outros casos, como disse, em que o desenvolvimento científico se deveu e deve a gente religiosa (o caso presente deste senhor, por exemplo), há e haverá realmente sempre gente que se transcende; mas não deixam de viver e trabalhar submetidos a um voluntário e teórico entendimento prévio do real. E isso pode "contaminar" a produção intelectual e científica, não necessariamente no sentido de tornar falsas ou erradas as suas conclusões e os seus processos, também não é uma questão apenas de honestidade, que pode não estar em causa, mas eventualmente no sentido de as tornar tendencialmente incompletas (porque nem toda a matéria é matéria de análise) ou pré-condicionadas.
Da mesma forma que um médico convictamente católico apostólico romano exerce o seu ofício de forma limitada à moral da sua religião. Se algo com que se confronte na sua profissão fere a sua ética pessoal católica, esse médico pode, como pode um pacifista, invocar objecção de consciência para se afastar, por exemplo.
Condiciona na medida em que o mundo para eles não é uma "tábua rasa" cheia de mistérios à espera de serem desvendados, como para qualquer cientista não-crente, mas sim uma maquete muito bem explicadinha com livro de instruções, que quanto muito carece de ter as peças todas no sítio. E quando algo radicalmente novo aparece, é fácil: foi deus na sua infinita sabedoria que nos pôs mais uma charada, um sinal ou um desafio ao caminho… Mas o facto irremediável é que a comunidade científica tem cada vez menos gente religiosa no seu seio.
Galileo, Copérnico ou Newton são, mesmo assim, casos raros. Entre outras coisas, porque foram revolucionários no contexto da sua religião, tiveram a coragem de ir mais alto do que os telhados do seu dogma, de questionar os próprios fundamentos da cosmovisão cristã.
Pagaram duro por isso, mas a razão prevaleceu. Ora, nem todos os cientistas católicos ou muçulmanos ou hindus estão dispostos a dar esse passo, seja por cobardia seja por não quererem pura e simplesmente pôr em causa verdades supostamente inabaláveis. E esse facto, obviamente, é limitador, constrange o livre desenvolvimento da ciência. Não é, de resto, por acaso que os avanços científicos nas sociedades muçulmanas seja pouco mais do que zero (quantos nóbeis islâmicos é que existem?) de há dez séculos para cá. Porquê? Porque a religião já oferece as respostas: Não é preciso perguntar?!...

Nada disto implica a menoridade da espiritualidade perante a ciência, são duas respeitáveis e poderosas esferas da experiência humana. Mas cada esfera em su sitio.

Moral da História: Não saber é fantástico, não há problema nenhum em não saber, nem é preciso saber tudo. Aliás, o que há de mais maravilhoso na vida, como dizia Einstein, é o mistério, é precisamente não saber: procurar respostas. Se calhar é, tão só, esse o sentido da vida para o homem: procurar(-se).

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