Esta "contra-revolução neoliberal", como a designou Milton Friedman, que leva à precarização das relações de trabalho, à desregularização social, à informalização da política, está em marcha desde os anos 70 e domina, entretanto, os critérios de orientação da União Europeia. Chega agora a Portugal e é concretizada com um conjunto de medidas políticas, que têm como fio condutor comum a tentativa de desprestígio do papel do Estado e de criação de um novo modelo social em que os ricos são cada vez mais ricos e os pobres aumentam, em relação aos níveis de vida de há algumas décadas. Isto porque, apesar do bolo da riqueza aumentar, as fatias de uns aumentaram de tal forma que as que sobram para os outros são forçosamente mais pequenas.»
São
Por estes dias vi, finalmente, A Rainha. O filme, aparentemente simples mas complexo e minimamente profundo, não defraudou as expectativas, nem em relação a Helen Mirren (simplesmente fabulosa e merecedora de todos os prémios e mais alguns), nem em relação a Frears, realizador que continua a não defraudar desde que o descobri numa memorável bela lavandaria, há uns bons 20 anos atrás. Cinema britânico de grande público no seu melhor.
Mais do que um filme escorreito e irrepreensível aos mais diversos títulos artísticos, onde todos os actores fazem um trabalho soberbo, com destaque para Michael Sheen no papel de Tony Blair, e onde ressalta o texto magnifico de Peter Morgan (argumentista do também aclamado “O último rei da Escócia”, outra abordagem às questões do poder), A Rainha é um excelente e realista ensaio de ciência política, reflectindo sobre a natureza do poder, sobre as encruzilhadas das novas tendências de organização política democrática e sobre o papel e o poder dos média nos dias de hoje.
Li algures uma comparação entre A Rainha e o igualmente superlativo “All the president’s men”, filme norte-americano dos anos 70, de Allan J. Pakula, em torno do tristemente célebre episódio do Water Gate, que levaria à demissão do presidente Nixon. A analogia é de todo pertinente, mormente no registo realista. A grande diferença, segundo creio, reside precisamente no papel dos média. Se no filme de Pakula o jornalismo serve propósitos nobres, de desmistificação do poder político e dos seus métodos obscuros, enquanto contra-poder clarificador, na obra de Frears surge como principal motor e bandeira de uma histeria colectiva, explorando até à última gota o sangue do cadáver daquela que foi um dos mais curiosos epifenómenos mediáticos das últimas décadas, para efeitos de tiragem em sucessivas edições demagógicas e panfletárias.
Partindo da realidade particular e de certa forma peculiar do sistema político britânico, e centrando-se no episódio da morte de Diana Spencer (a acção da obra decorre quase toda na semana entre o acidente em Paris e o funeral), em 1997, Frears reflecte, num tom quase documental e de um rigor fantástico (fazendo inclusive uso abundante de imagens de arquivo reais) em torno da “contra-revolução liberal”, que a jornalista do Público acima transcrita menciona, citando Milton Friedman. E em torno da forma como essa “contra-revolução” afecta (e degrada) as tradicionais estruturas e instituições de poder político. No caso, da instituição monárquica, corporizada na figura dramática da rainha Isabel II, mas também da instituição executiva, governativa, que se (pre)ocupa sobretudo da reeleição e dos índices de popularidade.
Tony Blair, recorde-se, acabara de ser eleito pela primeira vez e trazia consigo a aura de grande reformador, mentor e rosto do chamado "new labour”, a famigerada “terceira via” do socialismo tradicional, que a Portugal chegaria algo timidamente com António Guterres e, mais tarde, em todo o seu visível esplendor com o presente Sócrates. É disso que fala São José Almeida. É disso que fala também Frears em “A Rainha”.
Blair entretanto caiu em desgraça (precisamente como a personagem de Mirren previra no final do filme, na última reunião entre o primeiro-ministro britânico e a monarca), mas em 1997, sobretudo com a golpada de mestre de marketing político que constituiu a frase “a princesa do povo”, estava em absoluto estado de graça, capitalizando o sentimento popular negativo em relação à família real e à Rainha de Inglaterra que, ao contrário do populista Blair (cuja simpatia solidária, em privado, para com a Rainha não teve o correspondente reflexo público), tentou resistir ao volátil ditame emocional das massas, privilegiando a dignidade e a estabilidade da instituição secular de poder que representa.
De um lado, Blair em representação da referida “informalização da política” (espelhada, por exemplo, claramente na insistência com que, como realça Frears, pedia a todos que o tratassem por tu), do outro Isabel II em representação dos valores tradicionais da seriedade de Estado, tentando ingloriamente resistir à influência de uns média crescentemente tabloidizados, primários e sensacionalistas. Os média, a comunicação social, de resto, constituem o terceiro vértice do filme e, em última análise, desta “contra-revolução neoliberal”, dominada pela chamada sociedade do espectáculo, “imediática”, a que Isabel II resistiu a adaptar-se, revelando-se tragicamente inadaptada e anacrónica.
Em relação ao filme em si, tem ainda outra virtude, esquecida no turbilhão mediático avassalador e altamente dramatizado que rodeou a morte (e a vida) de Diana: a de lembrar que todas as histórias têm mais do que uma versão. E a de que as versões simplistas raramente são as mais correctas. Finalmente, com esta obra magnífica de Frears (insuspeito, dada a sua pública antipatia pela monarquia do seu país), pudemos rever algumas ideias feitas e preconceitos e ter um vislumbre do que se passou nos bastidores “do outro lado”, do lado da Rainha, aqui humanizada e quase “reabilitada”, que sempre persistiu no recato da sua real posição, assente na assumpção histórica do seu papel de estadista e garante da unidade da nação britânica.
Imperdível.
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