12/03/07

As Sincronizadas Morreram. Rest In Peace!, por Caliquenho


Cheguei aos Puros já tarde e pela mão de um basco vicioso, que introduziu os terríveis Caliquenhos de Valência no final dos jantares da Confraria. Os Caliquenhos, tortos em meia lua e impregnados de alcatrão, deixavam um fumador com uma sensação de torpor e tontura, tal era a brutidade da coisa. Davam mais pedra do que muitos charros que circulam por aí. Depois os Caliquenhos abandonaram a clandestinidade, a luta anti-tabágica acirrou-se e mesmo dentro da Confraria, pessoas houve que dum momento pró outro passaram do mais aceso Caliquenho ao mais feroz do corte. Dos públicos Caliquenhos passei aos puros em privado.

Mas recordo com saudade as Sincronizadas. Na altura, não havia jantar onde não abundassem os Caliquenhos e no final impunha-se quase sempre uma Sincronizada. Esta começou como um acto de vingança. Certa noite no restaurante Batina do Pinhal de Marrocos, onde pairávamos extasiados sobre paisagens tão variadas como arroz de línguas de bacalhau, polvo à lagareiro e raia suada, fomos abruptamente abatidos em pleno voo por espingardaria de tiro cerrado. Ao lado, uma tropa fandanga de enfermeiros e demais aves de arribação hospitalar, desatava a jantar, berrar, gargalhar, fumar e sobretudo, a cantar. Não tivemos qualquer hipótese ou aviso. De um momento para o outro as hordas bárbaras invadiram a sala e dominaram a coisa. Deixámos de nos ouvir a nós próprios, o polvo passou a saber a SG Gigante e fomos obrigados a tapar os ouvidos perante o faduncho atroz de uma perua de crista lacada, que há muito devia anos à cova.

Não se sabe bem como e de quem partiu a ideia, mas nesse dia estávamos bem municiados de caliquenhos e a coisa parece que nasceu de geração espontânea. De um momento para o outro, os dez ou doze confrades presentes na altura, interromperam a janta e acenderam as tochas da vingança. E depois de umas baforadas esparsas, alguém falou em sincronia. Acabava de nascer a Sincronizada. Dez ou doze bocarras from hell expeliam ao mesmo tempo a mais feia, porca e má das baforadas de fumo e alcatrão de que há memória desde os primórdios da revolução industrial a carvão.

A perua emproada começou a pigarrear, calou-se e sentou-se. Os enfermeiros e massagistas começaram a barafustar perante a névoa negra que começava a baixar do tecto, mas de nada lhes valeu. A sala voltou a ser nossa e se nós não podemos comer, ninguém come. Foi imparável, em poucos minutos o ar era irrespirável. O estalajadeiro ainda veio a correr abrir janelas e maximizar o ar condicionado, mas já era tarde. Enfermeiros, massagistas e fisioterapeutas batiam em retirada a resmungar ameaças de bisturi e clisteres, mas as Sincronizadas mantiveram a cadência acesa como se não fosse nada connosco. Daí em diante, criámos mesmo um código: nunca éramos os primeiros a puxar da fumaça intensa, pedia-se sempre ao estalajadeiro por ordem de fumo e esperámos pelo final da refeição; mantinham-se os olhos baixos e nunca se olhava nos olhos quem que fosse da mesa ao lado, para evitar os pedidos de piedade. Éramos implacáveis e impiedosos. Certa janta, no Peleiro do Paião, sentimos mesmo nas costas o mais feroz e mortal dos ódios que uma sala de restaurante pode votar a uma única mesa. Se alguém tivesse a coragem de gritar Jerónimo!, éramos de certeza chacinados. Abençoadas Sincronizadas. Rest In Peace.

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