24/05/07

Imperdoável e o Western - II: A Aprendizagem e a Metamorfose, por Mangas


Imperdoável não tem espaço para cavalheirismos, nem para cortesias e o glamour escapa-se-lhe na violência das armas e nas dores do medo. Dos westerns-spaghetti, perdeu os ângulos de câmara em perspectiva widescreen de Sérgio Leone e as bandas sonoras lancinantes de Morricone, em favor da construção dos personagens; a convencional contagem de cadáveres e a violência despida de rendilhados, no limiar da brutalidade, mantiveram-se como imagens de marca inconfundíveis. E toda a estrutura interna do filme, todos os diálogos e sequências, planos, vão descobrindo a profunda e silenciosa incoerência dos homens e dos rapazes que com eles aprendem o ofício, em última análise, vão revelando o fim de todos os heróis e o futuro negado pelo passado desses mesmos homens.

The Kid padece de uma cegueira patológica a mais de cem pés de distância e de uma cegueira interior para a realidade que o espera. Esconde a primeira para não dar parte fraca, consegue até certo ponto camuflar essa incapacidade com a arrogância e destemor suicidário de um pistoleiro batido, fanfarrão estereotipado como deve aparentar, mas na realidade o mais perto que esteve de matar um homem foi quando partiu a perna a um mexicano com uma pá, treme como varas verdes quando tem de executar o ás da navalha e chora como uma criança ao recordar a cena. Posteriormente, Kid arregala os olhos para a sua segunda cegueira depois do serviço terminado e põe-se a milhas dali para fora, you go on, keep it. I'm never gonna use it again. I won't kill nobody no more. I ain't like you, diz ele a Munny referindo-se à carabina de Ned.

Little Bill, o xerife que valeu o Óscar a Gene Hackman, sendo genuinamente um facínora do pior que a galeria de vilões dos westerns nos deu, impõe uma lei, a sua, à força do chicote e do colt45, mantém a cidade limpa de concorrentes e vai tentando encontrar vocação para carpinteiro na casa (leia-se: Big Whisky) que (des)constrói. Personagem fulcral em toda a história quer na herança violenta que carrega, quer na desmontagem da mitologia heróica de English Bob, um soberbo Richard Harris que encarna o pavão-dandy de saque rápido, tão suave e pomposo quanto mortífero, letal reminiscência do imperialismo britânico que advoga a Monarquia para que presidentes não sejam abatidos a tiro, a propósito da notícia do disparo sobre o presidente James A. Garfield. Estamos no ano de 1981 e lê-se a Cheyenne Gazette numa carruagem do Northwest Railroad. A fama de English Bob precede-o à chegada. Ficará o seu biógrafo a saber pouco depois, do lado de fora da jaula onde o English descansa a cara feita em papas pelas biqueiras das botas de Little Bill, a verdadeira história do abate de Two Gun Corcoran, mas não da forma como o passado heróico do pistoleiro manteve vivo no imaginário colectivo. Veja-se com atenção o ridículo desse momento lendário narrado por Little Bob como testemunha ocular que nos remete para «when the legend becomes fact, print the legend», ou o legado Fordiano desmistificado pela mão de Clint Eastwood no mais puro e duro dos westerns.

E é pelo medo que a personagem de Munny adquire uma extraordinária complexidade e contradição – o mais temido dos assassinos tem pesadelos e sente medo dos fantasmas de todos os homens, mulheres, e crianças que matou, medo do Anjo da Morte com olhos de serpente, medo de morrer e, sobretudo, medo que os seus filhos fiquem algum dia a saber quem ele foi e o que fez no passado, por isso, no delírio da febre e do corpo amassado pela porrada, faz apenas um pedido: Oh Ned, I'm scared, I'm dying. Don't tell nobody, don't tell my kids, none of the things I done, hear me? Na sequência final do filme, o álcool do qual tinha sido curado pela mulher falecida, reencontra a sua verdadeira natureza e a transformação de Munny é completa; não foram uns tragos para ganhar coragem, pois se começamos por ver nele, aparentemente, um tipo misterioso e fechado em crise de identidade, na continuidade da acção, sente-se que na realidade não tem nada a esconder desde que seja ele próprio, um assassino frio e implacável que não vacila no momento de matar - metafórica ironia por oposição que evoca o personagem Dude “Borachon” de Dean Martin em Rio Bravo (Hawks, 1959), caído em desgraça pelo álcool, transformou-se num cobarde sem dignidade e será pela cura ressacada que irá conseguir de novo encarar os inimigos olhos nos olhos. Também lá estão o jovem pistoleiro sequioso de fama, o aleijado voluntarioso, a fêmea fatal e o Duke com a estrela ao peito a limpar a cidade dos vilões por uma justa causa. Imperdoável não se sustenta de causas e a justiça nunca foi para ali chamada.

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